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Alimento puro, alma pura

Fotos: Leonaro Sá/Porã

Encontrei Angélica por acaso no Restaurante Sol da Terra. Não a conhecia pessoalmente. Primeiro vi uma mulher em vestes de algodão cru, indumento que se sobressaía sem esforço entre as Dudalinas e Lacostes que dão certo ar de formalidade sofisticada ao Hortomercado, na Enseada do Suá, Vitória. Minutos depois alguém me informaria: “Ela é a Angélica”.

 
Durante a produção da reportagem sobre o restaurante Cio da Terra planejou-se uma viagem às florestas do Caparaó para entrevistá-la: Angélica vive há pouco mais de duas décadas em meio à exuberância verde de águas cristalinas das montanhas sagradas localizadas na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, um recanto hippie em Divino São Lourenço, com sua Igreja do Santo Daime e a Casa de Vidro. Mas por algum motivo a viagem não se viabilizou. 
 
Desta vez a Divina Providência conspirou a favor. Conhecer a história do Cio da Terra sob a perspectiva de Angélica não é apenas escavar as memórias da mulher que com Geraldo Oscar de Paula lançou as sementes primordiais do restaurante. 
 
O chamado de reconexão entre homem e natureza que nutre a proposta de conscientização alimentar do Cio da Terra foi levado às últimas conseqüências por Angélica na forma de um processo lento, profundo e irremediável de transformação interior e busca de purificação. Ela foi à raiz, isto é, radicalizou os princípios geradores do Cio da Terra, transformando-os em vivência não por veleidades de renúncia à vida material, mas pela verdade de que “faço porque creio, não creio porque faço”. 
 

Um sorriso floresce timidamente antes de começar a contar como ela e Geraldo se conheceram. Vem um suspiro fundo, ela baixa os olhos. “Nossa, vou embarcar numa longa viagem”, confidencia como de si para si, absorta em lembranças. 

 
Foi há quarenta anos. Embora ele, natural de Guaçuí, morasse em São Paulo e ela, natural de Divino São Lourenço, morasse justamente em Guaçuí, eles se conheceram em um casamento na cidade do Rio de Janeiro. A decisão de unir os respectivos destinos veio logo depois. 
 
Viveram 11 anos na metrópole das metrópoles, tragados pela voragem da vida de concreto e asfalto. Angélica chacoalha a mão fazendo o típico movimento que põe polegar e indicador em choques rápidos para exprimir o cotidiano do casal na capital paulista. 
 
Cumpriam à risca o contrato socialmente aceito do viver para trabalhar e do trabalhar para viver. Lançaram-se na turbulência da cidade, batalharam a sobrevivência e a autossustentação, almejaram o triunfo da realização profissional, respiraram pó preto e contemplaram o céu cinza da babel paulistana. Foi em São Paulo que Angélica estudou e se formou em Decoração de Interiores, carreira que seguiu ainda quando retornou ao Espírito Santo. 
 
Talvez no fundo de cada um já se ouvisse o rumorejar leve e suave da vontade por uma vida em que ouvissem apenas os próprios corações, mas, suposições à parte, não foi exatamente o lufa-lufa à paulista que abriu as portas da percepção de Geraldo para o poder do alimento saudável. 
O poder veio dos livros. Certa vez, Angélica comprou alguns sobre alimentação que grupos adventistas vendiam de porta em porta – os adventistas privilegiam o regime alimentar vegetariano – e presenteou algumas pessoas, entre as quais sua mãe, que gostou tanto do presente que resolveu adquirir os mesmos livros e prosseguir na boa ação, mimoseando outros entes queridos. 
 
Um dos eleitos foi o genro. Foram esses livros o ponto de partida dos estudos posteriores de Geraldo sobre alimentação saudável que anos depois tomaria forma e conteúdo no Cio da Terra. Ou como diz Angélica com tocante singeleza: “Geraldo foi o que realmente leu e aproveitou. Foi esse presentinho de minha mãe que despertou o interesse dele”. As ideias de Geraldo estão sistematizadas no livro A Vida, os Seres Humanos e os Alimentos.
 
E por que o assunto acendeu o interesse dele? Constavam nos livros não apenas recomendações estritas de alimentação natural, porém, mais ainda, uma ideia fundamental, basilar, na concepção do Cio da Terra: a ideia da compartilha, de espalhar sementes, de dividir conhecimento, mas claro, sem a arrogância doutrinária. Quando Geraldo iniciou suas leituras e pesquisas, nascia ao mesmo tempo uma necessidade de levar conhecimento às pessoas. 
 
Como dissemos na matéria sobre o restaurante, Geraldo não conceberia um devaneio gastronômico, nem uma obsessão empreendedorista – o Cio da Terra nunca seria um negócio. “Geraldo sempre dizia: o Cio da Terra existe para devolver o livre-arbítrio, porque o ser humano perdeu a condição de livre-arbítrio”, diz Angélica. Daí que o Cio nunca tenha sido um projeto individual, concentrado nas atuações de Geraldo ou Angélica, mas, antes, a expressão de uma aspiração coletiva. 
 
Geraldo e Angélica retornam ao Espírito Santo com algumas raízes em processo de desprendimento e outras começando a se fixar dentro deles. Não vislumbravam de onde partia a reconvocação, muito menos para onde esta os guiava. Tudo que podiam fazer é senti-la avançando docemente por cada canto do ser – a alma parindo uma vontade vaga porém inteligível, o céu do coração alvorecendo mais puro e alvo – e obedecê-la. 
 
O primeiro e pragmático passo em direção ao Cio da Terra é dado tão logo desembarcam Vitória: abrem em um imóvel à Rua Maria Eleonora, em Jardim da Penha, o quilão em que funciona o restaurante Ferreirinha. Geraldo já vinha debruçado desde São Paulo em estudos sobre alimentação, investigando componentes nutricionais e benefícios para o organismo humano de cada fruta, legume, verdura ou hortaliça. 
 
O franco processo de autoconvencimento sobre o poder do alimento se refletiu num gesto simples e nobre no quilão: em cada barraca havia uma placa indicativa de valor nutricional dos produtos confeccionada uma a uma pelo próprio Geraldo. Cuidava ainda de uma parte em separado em que vendia produtos naturais como arroz integral, chás e açúcar demerara.
 
“Uma história muito linda”, diz Angélica sobre Albertino Uhlig, o já falecido agricultor de Santa Maria de Jetibá pioneiro da produção orgânica no Espírito Santo. Desde o início dos anos 80, um galpão localizado em Forte São João, numa travessa paralela ao antigo Terminal Dom Bosco, entre as avenidas Vitória e Beira-Mar, fora emprestado a um pequeno grupo de agricultores orgânicos para comercializar o que produziam.
 
O neófito vegetarianismo de Geraldo e Angélica encontrou nessa pequena feira realizada uma vez por semana a primeira e legítima fonte de frutas, verduras, legumes e hortaliças produzidos sem adubos químicos e agrotóxicos. Mas era uma aquisição ainda para consumo pessoal. O abastecimento geral do quilão ficava a cargo mesmo de uma produção cuja origem e metodologia gozavam de total e absoluto desconhecimento. 
 
O fato pesou o coração do casal: como eu vendo aquilo de que não me alimento? Dilema lancinante, angústia enorme. Mas frutífera: conduziu-os para uma transformação ainda maior e profundo, que, de certo modo, fremia latente dentro de Geraldo e Angélica. “O que é para mim, é para o meu irmão”, diz ela. O quilão encerra seu ciclo e a ordem natural das coisas, do tempo, do coração, engendra o restaurante Cio da Terra: 
 
Ao abrir o restaurante, Geraldo já dispunha do contato com agricultores orgânicos no estado, especialmente Albertino, a primeira fonte também do Cio da Terra. Assim como mais tarde faria no Barro Vermelho, de cuja feira orgânica foi um dos grandes incentivadores, Geraldo também encorajou aqueles desbravadores de Forte São João a defenderem seus ideais. 
 
O Cio da Terra buscava sempre os produtos mais verdadeiros. Angélica lembra aos risos a dificuldade que era respeitar esse princípio. Exemplo: dispor de água pura. Isso significava ir de Vitória para Santa Cruz, em Aracruz, para colher água diretamente na fonte – um princípio do Cio da Terra é cozinhar em água pura. Eram 350 litros de água por semana, o carro de Geraldo sofria. “A Marajó vinha arriadinha”, diverte-se. 
 
Foi o vegetarianismo que despertou a cozinheira adormecida dentro dela ao lhe apresentar não só uma festança de cores diversas e sabores dos alimentos mas também a possibilidade, que ainda hoje lhe põe enlevada, de elaborar verdadeiros jardins sobre a mesa. 
 
Sentia-se cada vez mais absorvida pelo Cio da Terra, a vontade de respirar a atmosfera da cozinha do restaurante, conferindo forma, cor e sabor à personalidade do Cio, só fazia crescer e envolvê-la. O curioso é que ela nunca teve uma relação especial com a arte culinária; fazia pratos comuns aos fins de semana; além disso, pouca coisa. Com o Cio da Terra, preparar alimentos deixou de ser um ato mecânico de sobrevivência para se consagrar em ato abençoado, uma oração à natureza.
 
Em que pese o enlevo e entusiasmo com a vida nova que surgia, Angélica ainda não renunciara à carreira de decoradora. Saía cedo de casa para visitar obras, apressada, preocupada, ansiosa, clamando para voltar o mais rápido possível para a cozinha do Cio da Terra. 
 
Sobretudo no primeiro ano, o restaurante experimentava um período de formulação do cardápio, experiências para materializar no ponto exato os princípios do restaurante. O alimento do Cio da Terra não partiu de receitas, livros ou cursos de culinária. A única referência era cozinhar alimentos orgânicos em água mineral, no vapor e em panelas de barro, sempre observando a diretriz de reconstituir a flora intestinal pela combinação criteriosa de alimentos, de modo a evitar ao máximo a fermentação.
 
Angélica e a equipe do restaurante mergulharam fundo no desafio de criação exigido pelo sistema de combinação alimentar do Cio da Terra. Deveriam afagar o paladar e o intestino em concomitância, congraçar o gostoso e o saudável. Racionalmente ela não consegue explicar como surgiam os pratos: nasciam da dedicação apaixonada, pela percepção, pelos sentidos, pela harmonização das cores e dos sabores. “Porque cores são manifestações das vitaminas; cada vitamina se manifesta com a cor”, diz. Geraldo depois confirmava cada criação.
 
Nesse início até houve sugestões de que abrissem ao modo self-service, das quais declinaram por discordarem em dispor a escolha do alimento ao gosto do cliente: seria violar o sistema de combinação alimentar do restaurante. Perseveraram nas bandejas.  
O Cio da Terra abriu com estratégia mais simples possível de atração de clientela: distribuir porções gratuitas aos transeuntes na rua em frente. Assim conquistaram os primeiros clientes, alguns dos quais viraram fiéis, ainda hoje clientes – agora do Alimento, o filho do Cio da Terra, em Mata da Praia. Eram raros, no entanto, uma carteira insuficiente para conferir autossuficiência ao restaurante e sobrevivência à equipe. 
 
“Paciência e perseverança foram o achado para a conduta”, indica Angélica sobre o êxito com que o tempo brindou Geraldo, Angélica e todos os que se irmanaram em torno da verdade oferecida pelo Cio da Terra. 
 
Foram um, dois, três anos sendo provido pelos próprios gestores. Ainda hoje ela ergue as sobrancelhas ante ao milagre inefável e maravilho de conquistar os clientes com o silêncio, como o Cio fez. As pessoas chegavam e se acomodavam nas mesas de bambu sem saber de que iam se alimentar, sem saber o que a bandejinha com os quatro pratos – a salada, a sopa, o prato quente, a sobremesa – iria devotar a seus sagrados corpos.
 

Angélica é uma mulher de 57 anos, pele morena, fresca e vivaz. Fala de forma pausada e serena, porém com o ardor de quem crê no que diz. Considera uma benção viver no meio da mata do Caparaó, a mesma região que em tempos remotos abrigou os Puris, índios que amargaram renhida perseguição de outras tribos, amedrontadas pela reputação que tinham de grandes feiticeiros.

 
Ela encontrou nesse pedacinho de terra adquirido no meio da mata a expressão maior do longo e inapelável processo de metamorfose interior que instava por se manifestar enquanto erguia tijolo a tijolo o Cio da Terra. Apenas hoje, numa análise retrospectiva, ela compreende os efeitos espirituais, psicológicos, metafísicos, ou, como prefere dizer, em estado de ser, do modelo de reconstrução da flora intestinal prescrito pelo Cio da Terra. 
 
A alimentação pura, viva, orgânica e combinada ao mesmo tempo beneficia a flora intestinal, órgão que produz vitaminas (K e B12) e boa parte do sangue, e evita ao máximo secreção de gases tóxicos que toldam a luz da consciência gerados pela fermentação. Para Angélica, o alimento puro gera sangue puro e oxigênio puro, portanto coração e sentimentos puros.  Intestino – base, terra – e cérebro – céu, criação – são partes do mesmo todo.
 
Seguiu rigorosamente o regime não fermentativo do Cio da Terra. “Mais que ele”, diz, rindo, contanto o quanto assustou Geraldo no início, tal a paixão com que imergiu naquela verdade, tamanha a mutação de valores que se iniciava. Certa dia ou noite sentiu que chegara o momento de beber água pura, pisar terra virgem, sorver ar fresco. “Um contato mais direto com as luzes do céu”, diz. 
 
Se a autopurificação por que tanto clamou não sai de outro lugar senão da terra, então por que não se integrar a Ela? 
 
Valores arraigados foram desabando, caindo, virando escombros e destroços no chão. Não da noite para o dia, nem de um ano para o outro. Angélica desenha uma imagem para expressar a dinâmica dessa ampulheta interior: os valores dão um giro de 180°, mas continuam, completam a volta e marcam os 360°. Prosseguem e dão novo giro em 180°, e depois 360°, em 180°, 360°, 180°, 360°. 
 
Não é eterno retorno, nem progressão. É o durante, o caminho, o deslocamento. 
 
Uma insondável sucessão de instantes gerou a vida de conciliação com a natureza que está na roupa de algodão cru, “vestes vivas”, que cobre seu corpo, na morada bioconstruída que protege seu corpo, no alimento que a terra lhe doa e nutre seu corpo. Está nas palavras vivas, vibrações intracorpóreas, que acalentam seu ser. Vive para não desestabilizar as leis naturais, ação e consciência fluindo pelos mesmos canais energéticos: “tudo o que está dentro, está fora”. 
 
Angélica chama isso de amor crístico, a harmonia inviolável e cristalina entre tudo o que há. A vida como espelho.

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