Bucólico é uma boa palavra para descrever Burarama. Distrito de Cachoeiro de Itapemirim, o local traz aquele ar de interior, com uma população tranquila e receptiva, uma praça, bares, casas antigas e um entorno próximo de uma floresta e com montanhas, com destaque para a Pedra da Ema, símbolo do local, por conta de uma sombra formar a imagem do animal no meio do rocha.
Por essas e outras características, o local virou um ponto importante do cinema capixaba, servindo de cenário para algumas produções rodadas nos últimos anos. E mais do que isso, virou um lugar de especial carinho para muitos diretores, atores, produtores e equipes.
Preparação durante gravações de Marraia, rodado este ano em Burarama. Foto: Divulgação
“Burawood”? “Hollyrama”? Ok. Seria forçar a barra a comparação com o glamouroso distrito cinematográfico de Los Angeles. Na verdade, Burarama se destaca justamente pelo contrário, a simplicidade. “O único jeito de filmar ali é realmente habitando a cidade. Não há hotel, não é possível ficar indo e vindo de Cachoeiro, então nós alugamos casas na cidade para toda a equipe e o elenco. E ninguém saía nas folgas, então o lugar do trabalho e o lugar do descanso eram Burarama”, conta o diretor Rodrigo Oliveira, que filmou lá o longa metragem “Teobaldo Morto, Romeu Exilado”, lançado em 2015.
Moradora do local, a professora Daniella Gava conta que Burarama recebe com alegria e satisfação as filmagens e festivais que têm acontecido lá. “Percebemos claramente a vontade de participação dos moradores, curiosidade sobre o tema abordado, havendo ou não relação com eles e suas famílias”. Ela lembra do “burburinho” que se forma na localidade quando acontecem os eventos cinematográficos. “É muito legal ver toda essa movimentação e perceber toda essa energia”.
Algumas das primeiras produções filmadas nesse “boom” cinematográfico do distrito nos últimos anos foram documentários como “O Palhaço Menino“, de Leo Alves, e “O Que Bererico vai pensar“, de Diego Scarparo, ambos em 2012, tendo sido exibidos em festivais e TVs. No primeiro, conta-se a história da folia de reis mirim do município, protagonizada por jovens e crianças. No segundo, um tema denso, que encontrou alguns silêncios e resistências na comunidade: a presença e atuação da Ação Integralista Brasileira em Burarama nos anos de 1930 e a divisão que provocou entre famílias do local. O experimental “As piabas de meu pai“, dirigido por Scarparo e Marcelo Grillo, baseado num conto deste, nascido em Burarama, também se situa na mesma época.
Cena de O Palhaço Menino, documentário dirigido por Leo Alves. Foto: Divulgação
Logo em seguida, as obras de ficção ganham força no local. Além do filme de Rodrigo Oliveira, foi realizado “Abelha Rainha”, curta-metragem filmado em 2018, dirigido por Thayla Fernandes com roteiro de Leo Alves, com recursos da Ministério da Cultura após ser contemplado no edital nacional do Prêmio Carmen Santos, com foco no fomento da participação das mulheres no cinema, tendo a equipe majoritariamente feminina.
Já em 2020 foram feitas as filmagem de Marraia, longa-metragem infanto-juvenil de Diego Scarparo. Para este ano, ao menos uma filmagem mais deve acontecer no distrito, com uma nova versão em curta-metragem de O Palhaço Menino, dessa vez em formato ficção.
Filmando em Burarama
“Acho que Burarama está vivendo uma coincidência muito feliz de várias pessoas, produtores e diretores, olharem para ela com carinho e amor, entendendo a peculiaridade que o lugar tem, com uma memória interessante, paisagem rica, um lugar pequeno, bucólico e com uma dinâmica muito interessante dos moradores” conta Leo Alves, que já participou de atividades no local como roteirista e diretor de filmes e produtor do Cine.Ema – Festival de Cinema Ambiental e Sustentável.
Cachoeirense radicado em Vitória, Diego Scaparo escolheu Burarama para gravar seu longa-metragem não só por já ter uma experiência prévia de haver gravado lá, criando proximidade com as famílias, mas também porque a própria história original do romance “Marraia”, adaptado de um livro de Marcelo Grillo, acontece lá. A existência de locais originais da época preservados também foi uma fator que permitiu a logística de filmagem, utilizando casa e móveis antigos com apoio dos proprietários para contar uma história ambientada na década de 1960. “Minha relação é muito boa. Eu respeito Burarama e a comunidade respeita meu trabalho há anos”, conta.
Já Rodrigo Oliveira, conheceu Burarama com um grupo de amigos no anos 2000, pois um deles possuía parentes e casa no local. Passaram muitos feriados por lá e a ideia de fazer um filme em Burarama fazia parte das brincadeiras entre amigos. “Até que um dia nós o fizemos”. A casa em que o protagonista se isola e recebe o amigo estrangeiro é a mesma em que Rodrigo e os amigos se hospedavam durante as viagens nos feriados.
“Os cafezais, as cachoeiras, os morros e pastos, todos os lugares que filmamos já existiam como imagem e experiência vivida, pessoal, já muito tempo”, relata. Diego Scarparo também destaca o entorno natural como uma parte importante e favorável para as produções. “A paisagem rural lá é linda. Usei nos filmes as cachoeiras, estradinhas, plantações”.
Festival fomenta formação e exibições
Ao mesmo tempo em que recebia filmagens, Burarama também passou a sediar um festival de cinema. Em 2015 estreou o Cine.Ema – Festival de Cinema Ambiental e Sustentável, realizado anualmente com foco na mostra de filmes ambientais além de realização de oficinas, workshops, palestras e outras atividades ligadas ao universo do cinema e da ecologia.
Exibição na praça durante a segunda edição do Cine.Ema, em 2016. Foto: Débora Benaim
O projeto foi concebido pela Caju Produções, responsável por algumas das filmagens ocorridas anteriormente no distrito. Leo Alves, que além de roteirista e diretor, é produtor do festival, conta que o Cine.Ema foi concebido como projeto ambiental para abordar questões sobre sustentabilidade, tendo em conta a vocação de Burarama não só para o turismo, mas também para atividades de consciência ambiental, por sua rica biodiversidade.
“Achamos interessante também porque ficamos impressionados com a falta de atividades culturais naquela região”, considera o produtor. Ele entende que o Cine.Ema se tornou um espaço que além de exaltar a beleza do local, pouco conhecido e reconhecido no Espírito santo, serve como uma janela de exibição do audiovisual na localidade.
Participação da população local
Algo marcante no testemunho de todos entrevistados que realizaram projetos em Burarama é a receptividade da população da localidade. O distrito fica movimentado com presença de forâneos, o comércio se aquece para receber as equipes e os moradores locais também se envolvem na produção e atuação.
“É muito bonito de ver”, diz Diego sobre a relação com os moradores durante as filmagens. “A comunidade quer saber tudo sobre você. Logo fiquei amigo de todo mundo. E ai de mim se não cumprimentasse cada criança na praça”, conta. O “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” é cortesia quase obrigatória cada vez que um visitante cruza com um morador. “Burarama recebe todos de braços aberto. As equipes costumam se reunir na praça e interagir com a comunidade. E Burarama fica bem triste quando vão embora. Eu até chorei”, conta o morador Vinícius Depollo, que se diz muito orgulho de haver participado de vários dos projetos ali realizados.
Thayla Fernandes considera que Abelha Rainha não teria sido possível se não houvesse envolvimento da comunidade. “Percorremos casas pedindo emprestado objetos de cena, integramos pessoas da comunidade na equipe técnica, contamos com participação das Meninas Bordadeiras de Burarama, que são um patrimônio histórico e cultural da região”, diz, lembrando que tanto as atividades do Cine.Ema quando a participação nos filmes, tem permitido que alguns dos moradores se formem e possam mostrar seu trabalho dentro da cadeia produtiva do cinema.
Oficinas capacitam jovens de Burarama em cinema e meio-ambiente no Cine.Ema. Foto: Divulgação
Rodrigo Oliveira considera Burarama como um lugar bastante liberal, ao contrário que parece sugerir ao se falar do interior capixaba, geralmente mais conservador e restrito.”Nós encontramos muita gente parceira, que virou amiga e apoiadora do filme, que comungavam de certa sensibilidade de artista. Daí que, no meio do processo, para essas pessoas ficou claro que aquele 'pessoal do cinema' não estava ali para filmar uma história exatamente palatável, não era uma comédia global”, diz, considerando que seu filme era “bem esquisitão” para os padrões hegemônicos. “. E o jeito com que essa estranheza do filme foi abraçada foi muito bonito, e engraçado”.
Os protagonistas ouviam teorias dos moradores sobre quem era o Teobaldo ou Romeu, quem morria ou quem se exilava. “E aí um dia esse filme esquisitão é exibido na praça de Burarama, a tela de cinema colocada na frente da igreja, umas 800 pessoas ali, e todo mundo está dentro do filme, viaja, se diverte, se emociona, e não precisava mais fazer sentido ou não, era um tipo de filme bem inédito pra maioria absoluta ali, tão peculiar quanto foi a nossa passagem por lá, e o filme era só uma extensão da nossa presença e da nossa interação. Foi lindo”, lembra Rodrigo.
Filmagens de “Teobaldo Morto, Romeu Exilado” no distrito de Cachoeiro. Foto: Divulgação
No dia das exibições é certa a presença de toda a família das pessoas que participaram da filmagem, conta Daniella Gava, uma das moradoras que se envolveu com o cinema nos últimos anos. “Todos querem se ver ou ver os seus na 'telona'. No momento em que aparece um morador em cena é alegria geral. Comentários, palmas, risadas, insatisfações. Cenas interessantes de quem não está aparecendo na tela”, conta.
Professora, Daniella se envolveu com o cinema inicialmente sensibilizando os alunos para a oficina de Vídeo Ambiental do Cine.Ema e os observando no desenvolvimento das atividades. Depois como diretora escolar, passou a apoiar mais diretamente o evento. No ano passado, seus filhos também foram parar nas telas ao serem entrevistados pelos alunos da oficina de Vídeo Ambiental no festival, conduzida pelo cineasta Gui Castor.
Agora em 2020, seu filho mais novo foi selecionado para fazer parte do elenco secundário de Marraia. “Até então eu não tinha noção do mundo de trabalho, comprometimento e amor que é o cinema. É intenso. Mesmo não acompanhando meu filho no dia-a-dia das gravações percebi claramente seu crescimento em amor pela arte, companheirismo e responsabilidade medida que se envolvia mais com a equipe”, relata a mãe. “Em contrapartida, tudo o que a equipe retribuía a ele fazia com que eu percebesse seu desenvolvimento em autoconfiança, autoestima e crescimento nesse novo mundo. Dias intensos de aprendizado, gratidão e saudade”.
Outro morador que se envolveu profundamente com o cinema foi Vinícius Depollo, que começou a se aproximar da área durante a gravação de Teobaldo Morto, Romeu Exilado, tendo posteriormente participado como assistente de iluminação em Abelha Rainha e como produtor local do Cine.Ema e de Marraia.
Equipe de “Abelha Rainha” num selfie em confraternização após gravações. Foto: Facebook
Isso abriu para Vinícius as portas do mundo da cultura, fazendo com que participe também de outros projeto culturais na região para além do cinema. “Essa é a área que quero para minha vida, trabalhar em filmes e fazer vários projetos. Para a minha comunidade e também se tiver propostas de sair, quero voar”.
São muitas as histórias contadas por quem gravou em Burarama. Diego Scarparo lembra das recentes gravações de Marraia, que tiveram que acontecer em janeiro por conta das férias escolares, para filmar com crianças. Era período de chuva. “Ficamos ilhados em Burarama. E de certa forma, posso dizer que tivemos sorte por não alagar por lá, mas ficamos dias sem gravar por conta das chuvas e também transformamos alguns lugares em cenários para continuarmos gravando. Exemplo o salão paroquial, que virou sala de aula”. Chegaram a ficar sem energia e sem água, o que ele diz que ajudou a unir a equipe e a comunidade.
Equipe participante de “Teobaldo Morto, Romeu Exilado”, com participação de moradores locais. Foto: Divulgação
“Tenho certeza que a cidade ainda se lembra da gente, porque foram dois meses ali perturbando o equilíbrio da vida deles”, brinca Rodrigo Oliveira. Um carinho que é recíproco. O diretor lembra que até hoje, seis anos após as filmagens de “Teobaldo Morto, Romeu Exilado”, membros da equipe que moram no Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Ceará costumam perguntá-lo quando o encontram: “sabe como tá Burarama?”.