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Casas ameaçam desmoronar em Conquista, mas Prefeitura de Vitória nega ajuda

Fotos: Leonardo Sá/Porã
O que impressiona na casa da desempregada Solange Gomes da Silva não é a pobreza; o que impressiona é que, não bastasse a pobreza, a casa em que vive há quatros anos com o marido cardiopata, filhos, genro e netos em Alto Conquista, Vitória, corre sério risco de desmoronamento. 
 
Semana passada, o piso do banheiro cedeu e levou junto o neto de quatro anos, que não se feriu. A cozinha estampa um severo rebaixamento de piso. Duas ripas de madeira cruzam o quarto do casal sustentando as paredes internas; o teto expõe vigas enferrujadas. O vento, ali, é um inimigo. “Eu tenho medo quando venta. Quando venta aqui, moço, a gente corre para a casa da vizinha e fica lá”, conta Solange, que já recebeu e pagou o carnê do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
 

Outras cerca de 30 famílias do bairro enfrentam situação semelhante. Em novembro, a Defensoria Pública Estadual obteve uma liminar em Ação Civil Pública contra a Prefeitura de Vitória (PMV) requerendo a efetivação do Projeto Terra Mais Igual, programa municipal de habitação, com concessão de aluguel provisório, bônus moradia, reassentamento e melhorias habitacionais às famílias residentes em áreas de risco. 

 
A prefeitura ignorou. Em janeiro, a Defensoria se manifestou novamente à Justiça, comunicando o descumprimento da liminar e obteve nova decisão em 25 de janeiro. A Prefeitura de Vitória está recorrendo com a defesa de falta de recursos para cumprir a determinação. Ao mesmo tempo, o Diário Oficial do município de 15 de março registra a ampliação do orçamento com publicidade em R$ 2,19 milhões, recursos oriundos do superávit financeiro de 2016.
 
O caso de Conquista é um desafio para o hoje vice-prefeito e futuro secretário municipal de Obras e Habitação, Sérgio Sá (PSB). 
 
A baiana Solange Santos da Silva é filha dos fluxos de mão de obra em direção às lavouras de café do norte capixaba. Nasceu numa família de pequenos agricultores em Piraí do Norte, cidade a 200 quilômetros de Salvador. Aos oito anos, mudou-se com a família para Ituberá, cidade pequena em cujo rio aprendeu a pescar. Anos depois, ainda adolescente, conheceu o marido, nascido em Camamu, autêntico filho de pescadores. Casaram-se e moraram em Ilhéus, Canavieiras e Porto Seguro vivendo da pesca artesanal. Mas a vida só ficava difícil. “Passava fome, moço. Trabalhava o dia todo para ganhar uma mixaria”, lamenta ela, que não sabe ler e aprendeu a escrever apenas o próprio nome.  

Numa noite de abril de 2002, iniciou a jornada para deixar a vida aflita de pescadora na Bahia ao entrar pela primeira vez em um ônibus rumo aos cafezais do estado vizinho. Soubera por amigos próximos que todo ano a colheita de café capixaba podia render recursos extras. Saiu de Ilhéus às 21h e chegou às 6h em Linhares. Foi uma viagem tranqüila, embora com uma ponta de angústia. 

 

“Eu pensava só na minha família, só nos meus filhos. Porque a gente quando está viajando assim, nossa, para longe, a gente está arriscando a nossa vida, não sabe o que vai acontecer lá na frente, só Deus”, lembra. Na fazenda, em Córrego Rodrigues, começou sem jeito: pegou apenas três sacas de café no primeiro dia. Quando pegou a manha, colhia pelo menos 10 ao dia. Foram oito anos seguidos em que deixava a Bahia uma vez por ano para colher café em Linhares. 
 
Juntou dinheiro e mudou-se com a família para Vitória em 2012. “Debaixo da ponte a gente não fica”, tranqüilizou os filhos. Alugou uma casa em São Pedro III e, com o marido, batalhava a vida pescando na baía: saíam de casa às 7h e voltavam no outro dia às 5h com a canoa prenhe de peixe, caranguejo, siri, sururu, ostra, que vendiam em feiras e para os vizinhos. 
 
Para fugir do aluguel, Solange saiu em busca do sonho da casa própria, que achou em Alto Conquista, a preço acessível e parcelas suaves. Ali seria dona também de um panorama cinematográfico da baía noroeste de Vitória. A família mudou-se mais uma vez.  
 
Se o cenário ao longe deslumbrante, a residência de Solange é desoladora, uma precária obra de engenharia de dimensões singelas, tijolos à mostra, instalada em um aclive entre rochas e matagal, aonde se chega por íngreme trilha de terra úmida e suja entre as pedras e o mato. Entra-se pela cozinha e logo se nota o primeiro sinal de perigo: uma cratera no piso de cimento cru causada, segundo Solange, pelas raízes da robusta mangueira que cresce colada à parede do banheiro. 
 

A cozinha é um estreito corredor em que se misturam um mobiliário triste e precário como a casa, como um velho fogão e a mesa em que repousa a TV de tubo. Um pano estendido na parede acima da bancada de alumínio disfarça a estrutura sem reboco; a fiação elétrica corre exposta pelo teto da casa inteira. O que alegra a moradora é a máquina de lavar recém-adquirida.
 
Ao final do corredor, à esquerda, Solange mostra o banheiro, cujo piso cedeu pela terceira vez semana passada. A solução foi recorrer a uma sobreposição de compensados para resolver o problema; vigas de madeira atravessam o local de fora a fora e completam a sustentação. A um canto, um enorme tonel azul conserva água. Entrar ali é também desviar-se da fiação elétrica.
 
Já os dois quartos enfrentam a cada chuva outra aflição: dependendo do volume, as águas escorrem pelas paredes como se olhos d’água brotassem. As janelas são cobertas por panos. As paredes do quarto de casal balançam sem grande esforço, justificando as ripas que atravessam o local e sustentam a estrutura. Um motor de barco em bom estado repousa a um canto do colchão encardido pelo excesso umidade. 
 
Quase sempre sentado à entrada da casa numa cadeira de plástico vendo TV está o marido de Solange, o pescador Ângelo Ramos. Costuma ficar sem camisa, deixando à mostra uma larga cicatriz no lado esquerdo do tórax, resultado de cirurgia por problemas cardíacos. A família tinha apenas três meses de casa nova quando, numa tarde de 2013, um enfarte nocauteou o pescador. Solange lançou-se com as duas mãos sobre o peito do marido para tentar reanimá-lo. Já era noite quando, com ajuda de vizinhos, conseguiu levá-lo escadaria abaixo para o Pronto-Atendimento de São Pedro. 
 
O quadro de saúde do pescador ainda inspira cuidados. Há um mês ele sofreu parada cardíaca e está há 12 dias internado no PA de São Pedro. 
 

A doença abalou a modesta economia doméstica. Solange mostra receio de sair para a baía sem companhia do marido, impedido por recomendação médica de fazer esforço. Ele dava seu jeito: enchia um balde branco de ostras para vendê-las na Curva da Jurema com a ajuda do neto, que carregava o balde para poupar o avô. Durante o verão deste ano, trabalharam de segunda a segunda, saindo cedo, voltando tarde. 

 
O que mantém, mesmo, a família são os R$ 420 que recebem há cerca de quatro anos do programa Bolsa-Famíla, do governo federal.
 
A caminhada de 20 minutos em direção à residência da família de Janete Silva, outra em periclitante situação de moradia, revelou um pouco desse bairro de topografia acidentada que abriga cerca de dois mil moradores, ocupando uma área que margeia a Rodovia Serafim Derenzi e se espalha pelas encostas do Maciço Central. Casas sem reboco são um elemento constante na paisagem e ainda há quem more em barracos erguidos com um imbricamento caótico de compensados – caso de Miguelina da Conceição Tibúrcio, um senhora que vive sozinha em um dos pontos mais altos do morro e que é uma das representadas no processo da Defensoria Pública Estadual.
 
A crise de segurança pública capixaba agravou a violência na região: uma disputa entre traficantes tão surda quanto aguda se desenrola desde fevereiro no alto do morro – tema abordado pelo próprio prefeito Luciano Rezende (PPS) durante sua a prestação de contas quinta-feira (30), na Câmara de Vitória. Os equipamentos públicos estão em bairros vizinhos, como Nova Palestina – onde estudam os netos de Solange – e Ilha das Caieiras. A exceção é a unidade de saúde na Serafim Derenzi. De resto, jovens e idosos não têm qualquer apoio do poder público.
 
Janete estende a mão forte na parede do quarto e faz força: “Olha como balança”. À primeira vista, a casa de Janete, uma negra retinta nascida em São Mateus, que veio ainda criança para Vitória, morou em orfanato em Cariacica, onde sofreu maus tratos, não se apresenta tão desoladora como a de Solange. Não há reboco nos três cômodos, mas certa dignidade sobrevive em quadros com fotos da família na parede e no mobiliário em estado razoável.
 
Seria um consolo, não fosse a imagem chocante da parede balançando. O vento, ali, também é um inimigo. “Falam que a qualquer momento minha casa vai cair. Está tudo mole. Quando venta, a gente que correr para o beco”, conta, desempregada e mãe solteira de cinco filhos que vive com R$ 120 do Bolsa-Família. 
 
Em reunião com a Defensoria Pública em 17 de fevereiro, Janete relatou que continuava na casa simplesmente por não ter para onde ir. A pequena varanda aos fundos é delimitada por uma grande rocha que deslizou anos atrás e por muito pouco não tragou a casa. Hoje apresenta fixação segura, atravessada por vergalhões.
 

Conquista talvez tenha a pior infraestrutura urbana da Grande São Pedro – a região com maior vulnerabilidade social de Vitória. Vielas imundas de terra batida e outras poucas pavimentadas que cortam o morro; alguns trechos cortam matagais e pontos viciados de lixo. Segundo moradores, há residências sem banheiro. Nas vielas, é possível testemunhar esgoto correndo a céu aberto. 

 
Um investimento em urbanização de amplitude talvez inédita para o bairro pode aliviar esse sentimento de abandono: com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), do Governo Federal, a prefeitura iniciou em março obras de requalificação de escadarias, instalação de corrimãos, implantação redes de água, de drenagem e de esgoto e realização de ligações domiciliares de esgoto. 
 
Suficiente? O cotidiano da unidade de saúde local responde. Além de exercer a função primordial de atender casos de baixa complexidade, virou a fonte em que deságuam as aflições do morro: famílias atrás de ajuda para a casa prestes a cair, mulheres que desmaiam de fome, jovens anêmicos (a brutal falta de opção levou um a viver por dias apenas de miojo), pais aflitos com a violência. 

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