Aprovado pelo Congresso Nacional no valor mensal de R$ 600, à revelia do governo federal que havia proposto R$ 200, o auxílio emergencial tem sido um respiro para muitas famílias diante da crise sanitária e econômica ocasionada pela pandemia do novo coronavírus. Olhando para as pessoas em maior vulnerabilidade, a população em situação de rua, que sequer possui residência para fazer o isolamento social, o recebimento do auxílio tem ajudado algumas pessoas a alugar uma casa.
É o caso de Jeferson dos Santos Barbosa, que há cerca de 11 anos vive em situação de rua, tendo por algum tempo residido com sua ex-companheira. Depois de se separar, voltou à rua e conta que ficou 33 dias sem um imóvel para se abrigar. “Eu trabalho, lavo carro, limpo quintal de casas. O auxílio deu um pontapé. Com o que eu ganhava dava para me manter, mas não dava para pagar aluguel”, conta. Depois de conseguir casa, recebeu doações de fogão, geladeira e outros móveis.
Quando soube do auxílio, estava sem documentos, mas conseguiu vencer a burocracia. Não hesitou: com o primeiro pagamento em mãos foi direto buscar casa e pagar o aluguel. “É claro que não queria morar na rua. Estava morando por obrigação. Me sentia fragilizado, mas não me diminuo não”, diz ele, que carrega a sequela de uma tentativa de assassinato que quase o fez perder todos os movimentos do lado esquerdo do corpo. Não conseguiu nenhum auxílio por conta da deficiência que dificulta seu desempenho profissional. Mas trabalha sem reclamar e projeta sonhos como montar um lava-jato.
Do total do auxílio, quase tudo vai para pagar os custos de ter uma residência: R$ 400 do aluguel, fora as contas de água e energia – esta ele havia pago no dia em que conversou com a reportagem: R$ 78.
O casal Álamo Santos e Miriã Amaro também aproveitou o acesso ao recurso para conseguir arcar com o aluguel. Depois de quatro anos em situação de rua em Vitória, eles foram aprovados em fevereiro para receber o aluguel social da prefeitura, que dá direito a dois anos de apoio com custos de aluguel e depois a oportunidade de acesso a crédito para compra de uma residência. Porém, com a pandemia tudo atrasou e até hoje não tiveram acesso ao aluguel social. Em situação de rua, ambos contraíram Covid-19 mas se curaram sem apresentar quadro de maior gravidade.
Os dois já levam quase dois anos frequentando os equipamentos como Centro Pop e Abrigo Noturno e quase o mesmo tempo sem uso de álcool e drogas, que os levou a perder a guarda dos sete filhos. Agora caminham passo a passo. Diante da renda proporcionada pelo auxílio, investiram na nova casa, com a esperança de que o benefício da prefeitura saia antes que o auxílio emergencial do governo federal termine ou seja reduzido. Trabalhavam com venda de acessórios para celular nos ônibus, porém com a pandemia as vendas caíram brutalmente, tanto pela queda de circulação como pelo receio em tocar e compartilhar coisas por medo de contágio. Miriã também trabalha dando faxinas e Álamo tem usado sua bicicleta cargueira diariamente para ir até as feiras da cidade e oferecer frete para transportar cargas.
Com casa, esperam poder ter maior condição de seguir os projetos de estudos para buscar uma melhor condição de vida. Ambos são estudantes do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), ela em Segurança do Trabalho e ele em Guia de Turismo. Ainda quando esperavam o auxílio emergencial ser depositado, conseguiram com ajuda de professores pagar o primeiro aluguel e depois receberam ajuda para organizar a casa. “Eu entrei com 4 sacolas de roupa que eu tinha na hospedagem e meu material escolar. Hoje minha casa está mobiliada, tenho tudo!”, diz Miriã, que entende que os apoios como auxílio emergencial e aluguel social são provisórios para ajudar a sair da condição de sem-teto, mas que são sim diretos e não favores.
Luis Anselmo faz questão de desconstruir os estigmas sobre a população em situação de rua. “Nem todo mundo que recebe o auxílio emergencial gasta tudo em droga. Eu sou um exemplo que há três meses estou com casa alugada consumindo a maior parte em aluguel e comida. Estava em situação de rua há coisa de 10 anos. Então veio um tempo muito bom com esse auxílio emergencial. Eu acho que é hora de sair da rua”, diz ele, que nesses anos contraiu hepatite e esofagite, mas toma medicamentos e faz acompanhamento. Vendedor de bala nos ônibus e sinais, no final do ano passado ele deu entrada no pedido para ter acesso a programa habitacional da Serra por meio do aluguel social. “Não só eu como outros estão se recuperando e voltando para casa e encontrando amigos”, relata.
Integrante da Pastoral do Povo da Rua, que presta apoio a essa população, Mindu Zinek, conta que como estes, há muito outros casos acontecendo, como o de uma mulher grávida que conseguiu fixar residência e sair da rua semanas antes de ter o filho e pode então, ver seu filho crescer sob um teto. Agora, os apoiadores estão buscando doações para comprar o enxoval do bebê. “Alguns nos falam diretamente, outros deixam de aparecer nos momentos de doações e abordagens e ficamos sabendo por terceiros que agora estão em uma residência. Há aqueles que veem na casa uma oportunidade de superar as drogas, e preferem se afastar do contato com pessoas da rua que são usuárias para evitar uma recaída”, explica..
Ele chama atenção também para a solidariedade, já que em alguns casos, as pessoas que conseguem alugar um espaço levam junto amigos que estavam na rua, como é o caso um morador que falou com a reportagem mas não quis se identificar, que acolheu duas outras pessoas na casa que divide com a companheira. O integrante da Pastoral do Povo da Rua também confirma a existência de outros casos similares conhecidos por ele.
Mindu cita o programa Casa Primeiro, surgido em Portugal e expandido por outros países, no qual é justamente a garantia de moradia a primeira iniciativa para esta população, que vem acompanhada de uma série de políticas públicas de assistência social, acompanhamento psicológico e programas de educação, saúde, trabalho e renda, entre outros. Não é o que vem acontecendo no Brasil nesse caso, já que a oportunidade de sair da rua com apoio da renda do auxílio vem sendo aproveitada por algumas pessoas mas não vem acompanhada de outras políticas. “O Movimento Nacional da População de Rua tem batido muito nessa tecla de que as ações do poder público só serão efetivas se foram intersetoriais, envolvendo as diversas secretarias, senão acaba se resumindo a medidas paliativas e homogêneas a um problema extremamente heterogêneo e complexo”, avalia.
O apoio do auxílio emergencial federal se vê tão frágil quando sua duração, que pode seguir apenas até o fim do ano, com valor reduzido pela metade ou menos do que isso, e a seguinte substituição pelo programa Renda Brasil, que deve entrar no lugar do Bolsa Família, que hoje ajudas pessoas com baixa renda com R$ 90 mensais.
As pessoas que fazem acompanhamento de quem está em situação de rua também revelam que boa parte destes não conseguiram o auxílio emergencial por não possuir documentos, embora em tese todos cadastrados no CadÚnico tenham direito ao auxílio de R$ 600.
Mas Mindu também aponta para o outro lado da pandemia, já que a cada abordagem encontra pessoas novas nas ruas. “Algumas perderam o emprego, não tinham como pagar o aluguel nem conseguiram o auxílio emergencial por conta da burocracia e se viram em questões de semanas em situação de rua. São situações muito críticas, porque são pessoas que nunca estiveram nessa situação e ficam mais vulneráveis pois não conhecem as formas de lidar com as dificuldades que aparecem para quem está na rua”, relata.
O pouco empenho e a lentidão da ação do poder público no início da pandemia em relação à população em situação de rua, que era justamente a mais fragilizada diante da necessidade de isolamento social, demonstram como ainda estamos longe de uma situação ideal. Mas para quem conseguiu dar o primeiro passo de conseguir um teto para morar, o esforço é para manter-se. “Tive muitos problemas. Ninguém viveu a vida que eu vivi. Mas ficou para trás. Hoje em dia, depois de anos, eu vou a qualquer lugar de cabeça erguida”, afirma Jeferson.