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Com organização e trabalho, movimento por moradia reinventa um símbolo do abandono

Fotos: Leonardo Sá/Porã

As famílias do movimento Alto Grande Vitória ocuparam o prédio do antigo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), colosso de 12 andares entre a Rua do Rosário e a Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, por volta das 18h do último sábado (6) e, menos de duas horas depois, apesar do cansaço de cruzar a cidade para uma nova ocupação, deram uma mostra de que a luta por moradia se mantinha firme: reuniram um expressivo ajuntamento de entulho junto à Rua do Rosário.

 
Um retrato do abandono no coração da cidade, o IAPI começava a ganhar uma nova cara com um intenso trabalho de limpeza que entraria madrugada adentro. As famílias tinham acabado de deixar a Casa do Cidadão, em Itararé. 
 
Na tarde desta segunda-feira (8), a agitação e o entusiasmo ainda eram flagrantes no IAPI, manifestados numa comunhão pela dignidade de quem, até então, só dormira ao relento. Mulheres limpavam a calçada com água. Lá dentro, em um corredor escuro, um homem, lanterna na boca, chave de fenda na mão, enroscava na parede um suporte para lâmpadas tubulares. Perto dali, mulheres varriam e passavam pano no chão poeirento de uma área iluminada apenas pela luz natural que entrava pelas janelas. 
 
O movimento que começou no início de abril com 700 famílias demarcando lotes em uma área acidentada entre os bairros Grande Vitória e Universitário, na Grande São Pedro, e que depois dormiu na cantina de um prédio público, parece ter alcançado seu melhor momento. Formado por uma massa de desempregados, o movimento rejeita paliativos como “Aluguel Social” e reivindica casa própria por meio de bônus moradia. Os próprios direitos já não parecem algo tão impalpável.
 
Cerca de 400 pessoas ocupam o primeiro andar do Edifício Getúlio Vargas. Após um breve lance de escadas, uma porta se abre para uma área ampla, iluminada e arejada, marcada por colunas robustas, pelo piso de taco e por janelas basculantes que delineiam todo o espaço, conferindo ventilação e um complemento de luz natural à artificial das lâmpadas fluorescentes já em funcionamento. Onze barracas instaladas junto às janelas completam a demarcação do espaço.
 
É a área comum da ocupação, onde acontecem as reuniões, orações, café da manhã, almoço e janta. É também uma espécie de área de lazer das crianças – que não são poucas. Nessa tarde, cinco ou seis estavam debruçadas sobre o taco desenhando a dedo papeis em branco com tinta guache. Um sol amarelo aqui, uma nuvem azul acolá. Ao fim, uma das meninas estava azul da cabeça aos pés. “Parece aqueles bonequinho de desenho animado”, brincou o pai. Meninos gritavam e corriam descalços de um lado para o outro.
 
A cozinha foi improvisada em um espaço azulejado da própria área comum. O fogão portátil fica a um canto, ao lado da do espaço em que ficam legumes, folhas e hortaliças recebidos por doação. Dois galões abrigam água para a preparação dos alimentos. Um dos responsáveis pela cozinha é o desempregado Warley dos Reis, 47.
 
Encanador industrial, Warley morava de aluguel em Vasco da Gama, Cariacica. Diagnosticado com insuficiência cardíaca, parou de trabalhar e, portanto, de honrar os R$ 350 mensais do aluguel. Integra uma das cerca de 50 famílias da ocupação que não têm para onde ir. Ali, começa a preparar o café da manhã às 6h, o almoço às 8h e a janta às 17h. “Para as crianças dormirem jantadas”, diz. Serve de 150 a 180 pratos por dia.
 
Afastadas da área comum estão os banheiros – entupidos, emanam um cheiro fétido que, contudo, se esvai ali mesmo – e os dois quartos destinados a famílias com crianças por apresentarem condições sanitárias mais adequadas. São tão arejados e iluminados quanto a área comum. Um terceiro quarto também é ocupado por famílias, mas é vizinho de uma imagem inconcebível: uma água abjetamente esverdeada é vista a três metros abaixo da janela. Uma piscina imunda que sobe da garagem subterrânea. 
 

As famílias se espalham ainda por algumas outras salas e áreas mais amplas. Mulheres limpavam uma área posterior à entrada do prédio para receber mais famílias que chegavam.

 
O movimento estabeleceu uma organização estruturada em quatro comissões – as comissões de cozinha, segurança, limpeza e decisões – e três regras de convivência – são proibidos os usos de bebida alcoólica, cigarro e drogas – que azeitam o funcionamento da ocupação. O café da manhã é servido a partir das 8h; o almoço, entre 12h e 13h; o café da tarde, entre 15h e 16; o jantar entre 19h e 20h. O café da manhã e o janta são precedidos por uma reunião e uma oração.
 
O bom acolhimento de moradores e comerciantes do entorno fortalece a ocupação. No domingo (8) pela manhã, dois homens chegaram com colchões, produtos de limpeza e água potável. Há uma sala para guardar os alimentos não perecíveis e há um espaço improvisado para exposição de roupas doadas: aqui, cada morador pega o que precisa.
 
As famílias deixaram a Casa do Cidadão após entrar em acordo com representantes da Prefeitura de Vitória para a inscrição de 119 delas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), programa do governo federal de coleta de dados para identificação de famílias de baixa renda. A inscrição deve ser realizada na próxima sexta-feira (12). Outro ponto do acordo prevê que os membros do movimento sejam priorizados no próximo programa habitacional. 
 

Anoitecia nesta segunda, mas Cristian de Oliveira, 24, continuava caminhando freneticamente por todo o amplo hall do prédio. Eletricista desempregado há quatro meses, instalara no domingo a iluminação da área comum e se empenhava para iluminar a área penumbrosa que as mulheres faxinavam. As mãos estavam negras, como os bolsos da calça jeans, em que se penduravam o alicate, a chave de fenda e uma fita isolante.

 
Cristian mora, sozinho, de aluguel em São Pedro IV e tem que entregar a casa em três semanas e, ainda, honrar pagar uma dívida de R$ 600 com os proprietários, a quem destinava R$ 350 mensais pelo imóvel. Sua presença na ocupação é autoexplicativa. Casou-se sábado na Casa do Cidadão. A esposa também está na ocupação. “Casei graças ao grupo”, orgulha-se. 
 
Cristian é mais uma face do movimento, que reúne entre seus membros pedreiros, pintores e um bombeiro hidráulico. Todos já dispuseram as respectivas habilidades em favor da ocupação, razão pela qual compreende porque um local decrépito transformou-se em moradia em menos de 48 horas. 
 
A ocupação, no entanto, continua precisando de doações: colchões, fraldas, leite, alimentos não perecíveis, barracas, água potável, materiais de limpeza.

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