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Consumação mínima em quiosques na Curva da Jurema chega a R$ 1 mil

Defensoria oficiou Procons para que fiscalizem a prática de consumação mínima, mas não obteve resposta

Cerca de um mês depois de ter visitado a Curva da Jurema e constatar a imposição de consumação mínima em quiosques, Século Diário voltou à praia e obteve a informação de que essa prática não somente continua como também aumentou de preço. As tendas, que antes exigiam consumação mínima de R$ 200,00 em dias de semana e de R$ 300,00 aos sábados e domingos, agora têm consumação mínima de R$ 1 mil.

As tendas ficam dentro do cercado com corda ao redor dos quiosques, diferentemente da última vez que Século Diário foi ao local, que tinha também fora do cercado. Na visita feita em janeiro, havia também as mesas de madeira, com guarda-sol, consideradas mais simples e cujo valor era de R$ 100,00. Desta vez, a informação obtida foi de que não há consumação mínima nelas, o que foi confirmado por frequentadores que as estavam utilizando.

Elaine Dal Gobbo

Após repercussão da matéria veiculada por Século Diário em janeiro, a Defensoria Pública do Estado (DPES), por meio do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia, oficiou o presidente do Procon Estadual, Rogério da Silva Athayde; e a gerente do Procon Municipal de Vitória, Denize Izaita Pinto, solicitando que ambos os órgãos “fiscalizem a prática realizada pelos quiosques da Praia da Curva da Jurema de cobrar um valor de consumação mínima para o uso das suas sombrinhas, mesas e cadeiras e que tomem as medidas coercitivas cabíveis para impedir a sua continuidade”.

No ofício, a Defensoria afirma que, com base na matéria, “esses quiosques estariam cercando com cordas o espaço público ao seu redor, utilizado por eles para a instalação de mesas, cadeiras e sombrinhas, restringindo o local de trânsito e permanência dos frequentadores da praia. Eles também estariam colocando placas informando a proibição de caixa térmica, caixa de som e a circulação de ambulantes”.

Prossegue dizendo que, “ao mesmo tempo, os quiosques estariam cobrando taxa de consumação para a permanência nas suas sombrinhas, mesas e cadeiras, tanto daquelas instaladas ao redor do quiosque, como de outras instaladas à beira da praia”.
E ainda que, “na mencionada reportagem, foram colhidos os relatos de antigos frequentadores da praia, que agora não conseguem permanecer nas faixas de areia cercadas pelos comerciantes locais, por falta de condições financeiras para pagar a taxa de consumação, que varia de R$ 100,00 a R$ 300,00”.
A DPES destaca no documento que o Código de Defesa do Consumidor, no artigo 39, “estabelece como abusiva e veda a prática de condicionar o fornecimento de produto ou de serviço a limites quantitativos, o que se enquadra no que popularmente conhecemos como venda casada”. “Assim, entendemos que a exigência de um consumo mínimo para a permanência nas barracas de praia não pode ser admitida”, conclui.
A DPES solicitou uma resposta em prazo não superior a 15 dias. Entretanto, informa, a demanda não foi respondida. O Procon Estadual chegou a anunciar em seu site que “para combater essa prática [cobrança de consumação mínima], proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, o Instituto Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-ES) oficiou a Secretaria do Patrimônio da União, delegatária dos imóveis situados na faixa de praia, e o Ministério Público Federal”.
O órgão segue dizendo que “também notificou o Sindicato dos Restaurantes, Bares e Similares do Espírito Santo (Sindbares) e a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), para uma atuação coletiva visando ao cumprimento da legislação”. Essas iniciativas, conforme observado na segunda visita feita por Século Diário à Curva da Jurema, não surtiram nenhum efeito até o momento, cabendo ações mais rígidas para coibir a prática de consumação mínima. 
Mudanças
A primeira visita de Século Diário à Curva da Jurema para averiguar o processo de gentrificação aconteceu após o assunto ganhar repercussão nas redes sociais. É perceptível, por exemplo, que os quiosques, outrora mais simples, deram lugar a outros, mais sofisticados, e, consequentemente, mais caros. Agora já não se encontra com tanta facilidade grupos de banhistas que se divertem com a bola ou outros objetos trazidos de casa, mas é visível, em espaços grandes da faixa de areia, quadras de beach tennis e bases de canoas havaianas, atividades pagas. Academia, café, lojas de roupa, tudo isso agora faz parte do cenário.

Em um quiosque que a repórter visitou, uma senhora, acompanhada de um rapaz, pediu o cardápio, mas foi informada de que não poderia comer ali porque não é autorizado consumir no local portando uma caixa de isopor. A dela, escrito “vende-se chup-chup”, foi motivo para que, independentemente de pedir o cardápio como uma cliente qualquer, não pudesse usufruir dos serviços.
Elaine Dal Gobbo

O advogado André Moreira, na ocasião, não descartou a possibilidade de o ocorrido com a vendedora de chup-chup poder ser enquadrado na Lei 7.716/1989, que “define os crimes resultantes de raça ou de cor”, e que em seu artigo 8º prevê reclusão de um a três anos em caso de “impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público”.

“Que não pode entrar com caixa térmica para consumir no quiosque o que trouxe de casa a gente até entende, mas uma trabalhadora ambulante que resolveu parar para comer não poder entrar com a caixa térmica? A gente tem que fazer alguns questionamentos. Quem é que está com a caixa térmica? Há algum impedimento real ou essa pessoa é identificada com alguma etnia? Quem sai de caixa térmica são os mais populares, ela é a marca de uma classe de maioria negra. Nessas situações, é uma violação do direito da pessoa ao serviço, é discriminação”, aponta.

Frequentadores da praia queixam-se das mudanças ocorridas. A jornalista Mônica Oliveira morou em Vitória, no bairro São Pedro, durante 15 anos, e sempre frequentou a praia. Agora reside em Brasília e, sempre que visita o Espírito Santo, a Curva da Jurema é parada obrigatória. “Eu morava na periferia, e a praia mais próxima dos bairros da periferia em Vitória é a Curva da Jurema. É a praia que a população de São Pedro frequenta. Sempre que estou aqui, vou até lá. É uma referência para mim, referência de afetos, de lembranças da cidade”, lembra.
Entretanto, Mônica lamenta que na última vez que esteve no Estado, em dezembro último, percebeu que a praia não é mais tão acolhedora como antes. “Vi umas tendas e quis sentar para tirar uma foto, mas um funcionário do quiosque disse que não podia. Agora, nem todo espaço é meu, tem espaços que não me acolhem mais. Eu conseguia acessar todas as faixas de areia sem nenhum problema, mas dessa vez alguém chegou para mim e disse ‘você não pode ir ali'”, queixa-se, referindo-se às tendas as quais se pode utilizar somente com consumação mínima.
‘A elite não pode ter vista para os pobres’
O porteiro Henrique Gonçalves de Jesus, acompanhado do amigo, o motorista de aplicativo Paulo Fraga, observava e comentava as mudanças na praia, quando foi abordado pela repórter de Século Diário e não hesitou em falar sobre o tema. “A elite não pode ter vista para os pobres”, concluiu, atribuindo as alterações na Curva da Jurema à construção do condomínio de luxo Reserva Vitória, atrás do Shopping Vitória e ao lado da praia.
Perspectiva da fachada do condomínio. Imagem: Divulgação

Apresentado em setembro último, o condomínio contará com dois empreendimentos: o Ilha Vitória e Ilha de Trindade Ocean Front Residence, ao lado do Parque Cultural Reserva de Vitória, inaugurado em dezembro passado, com espaços de lazer e obras de arte a céu aberto, em uma área de 16 mil m², construído pela iniciativa privada e cedido para a Prefeitura de Vitória.

Henrique, frequentador assíduo da Curva da Jurema, afirma que hoje se sente intimidado quando está no local. “Sempre que venho, trago minha cerveja na caixa. Daqui a pouco não irão permitir mais, terei que consumir aqui, mas uma cerveja que custava R$ 8,00 agora é R$ 16,00. O consumo ficou difícil. Daqui a alguns dias a gente não vai mais poder frequentar a praia, vai ter que buscar outra, mas não sei qual. Se eu não posso sentar numa mesa porque não tenho condição de pagar R$ 16,00 em uma cerveja, me sinto intimidado. Se não posso sentar em uma rede porque não estou consumindo, me sinto intimidado”, desabafa.

Paulo também lamenta as mudanças. “Tem a Curva da Jurema que foi e a que está sendo. Eu via gente de vários bairros, de bairros pobres, que vinha para cá. Com o tempo, vai ser gente de uma classe mais alta que vai frequentar. Parte da areia está tomada pelos quiosques, como se fosse privado”, reforça.
Gentrificação
O professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Kleber Frizzera classifica o que está acontecendo na Curva da Jurema como um processo de gentrificação, ou seja, “transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas”.
Assim como Henrique, Kleber acredita que a gestão municipal está fazendo uma ‘limpeza” para atender a interesses imobiliários”. “Há um esforço para transformar a área para outro tipo de público. O comprador do imóvel não vai querer que ao lado tenha uma praia popular. Os preços na Curva da Jurema certamente estão mais caros, o tipo de consumo está diferente, então se expulsa as pessoas pelo preço, por certas imposições, é como se o pobre tivesse que ficar no morro, não podendo usufruir das belezas da cidade”, analisa.
O professor da Ufes também faz críticas ao destacamento da Polícia Militar (PM) instalado no local. “Colocaram um destacamento da PM, com diversas viaturas, uma vez passei por lá e tinha nove. É um excesso de visibilidade da segurança, como se o local fosse uma catástrofe nesse quesito. Passa a ideia de que não vai ter música, dança, práticas relacionadas à cultura popular. É intimidador”, afirma.
Elaine Dal Gobbo

Kleber aponta ainda que o destacamento é “imenso”, sem nenhuma janela transparente que deixe os transeuntes verem o que acontece em seu interior. “É uma política de segurança pouco visível, pouco transparente. Se não querem que as coisas sejam vistas, se fecha. Por que fechar um destacamento? Você fecha penitenciária. Conceito de equipamento público fechado é uma política de segurança que não é transparente. Os objetos arquitetônicos mostram sua face, suas intenções, então têm que ser transparentes”, defende.

Ele acredita que haverá um processo de resistência à gentrificação. “As pessoas passarão a levar suas próprias bebidas no isopor, começarão a surgir vendedores ambulantes para atender esse pessoal que já não é mais atendido pelos quiosques”, prevê.

Mônica Oliveira concorda em partes. Para ela, existirá sim um processo de resistência, mas que pode esbarrar na crença na meritocracia. “Muitas vezes a pessoa pobre reconhece quem tem dinheiro como alguém que se esforçou e merece estar naquele espaço, aí se ausenta dele por achar que não deve estar ali. Falta formação, falta conscientização. Muitos pensam que o patrão é patrão porque trabalhou igual a ele, e não porque ganhou herança”, diz.
Pandemia
O arquiteto André Abe aponta que a pandemia da Covid-19 trouxe a classe média e a classe média alta para a Curva da Jurema, evitando deslocamento para as praias de Guarapari. “O pessoal que frequenta Guarapari descobriu que não precisa ir até lá para se divertir na praia, para levar o cachorro para passear, para levar as crianças para se divertir”, enumera, destacando que agora a Curva da Jurema tem grupos de canoa e outras atividades esportivas do tipo. A classe média pode passar a pensar que ‘não é só Copacabana que pode ter isso”.
André afirma que trata-se de uma tentativa de integração urbana de um espaço no qual se passou a ter interesse imobiliário. “Se não fizer essas mudanças, não vai dar para vender imóveis que custam R$ 4 milhões”, ressalta. Entretanto, ele enxerga aspectos positivos. “É uma apropriação no sentido de as pessoas passarem a usar mais essa praia, a descobrir mais essa praia, mas isso deve ser feito dentro de um certo limite”, defende.
Ele destaca a necessidade de as novas atividades esportivas serem bem administradas. “Tem que administrar bem, caso contrário, um determinado grupo toma o espaço. A canoa já está ocupando um espaço grande na areia. Também tem que garantir a preservação da vegetação”, alerta.
Edital de obras
As mudanças na Curva da Jurema não param por aí. Em 19 de janeiro, a gestão de Lorenzo Pazolini (Republicanos) lançou o edital de obras de reurbanização na região. A iniciativa faz parte de um pacote de R$ 1 bilhão de investimentos em várias áreas, até 2024. Na Curva da Jurema, especificamente, o investimento será de R$ 5 milhões, contemplando reparo da ciclovia e implantação de paraciclos e remodelação das áreas de estacionamento, incluindo vagas para ponto de táxi, destinadas a idosos e pessoas com deficiência, bem como de embarque e desembarque de carga e descarga.
Perspectiva da praia após reurbanização. Imagem: PMV

As obras também vão incluir a criação de novas áreas verdes, a instalação de novo mobiliário urbano e a criação de novos acessos ao calçadão. Será realizado, ainda, o alargamento e novo piso do calçadão e da ciclovia, criando novas áreas de paisagismo, além de iluminação com cabeamento subterrâneo.

O trecho de rua em frente aos quiosques terá seu piso trocado e nivelado, para circulação segura e redução da velocidade dos veículos. O projeto também contempla faixa elevada em todo percurso.


‘Imposição de consumação mínima em quiosques é prática abusiva’

Exigência praticada na Curva da Jurema fere o Código de Defesa do Consumidor, afirma diretor-presidente do Procon/ES


https://www.seculodiario.com.br/direitos/imposicao-de-consumacao-minima-em-quiosques-e-pratica-abusiva

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