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Depois de sofrer AVC, fotógrafo registra vida de pessoas com deficiência

Fotos: Rafael Bof

Com uma mão, a esquerda, Rafael equilibra a câmera fotográfica e maneja todas suas funções. Obturador, diafragma, foco, flash e ainda o click do botão derradeiro, que cristaliza os instantes. Click. Por uma fração de segundo a lente escurece. 

Foi depois de um escurecer que Rafael Domingos Bof acordou, totalmente confuso, deitado num leito de hospital. Foram 13 dias em coma, dois meses internado.

Aos 23 anos havia sofrido um acidente vascular cerebral (AVC), fruto de má formação genética no coração, que gerou um coágulo no cérebro. Enquanto me fala de seu coração, tocam os sinos da Catedral de Vitória, próximo a sua residência na Cidade Alta, Centro de Vitória. Sinos, corações, fotografias. Blem blem blem. Tum tum tum. Click Click Click.

Rafael Bof era músico. Desde jovem tocava clarinete, trompete, flauta e algo de órgão e piano, chegando a fazer parte da banda júnior da Polícia Militar. A poesia também era uma predileção que costuma praticar. “Eu era gerente de call center, falava o tempo todo”, conta. De repente, não mais que de repente, ele se via sem capacidade de expressão. Havia perdido a fala e não conseguia mover o corpo. Inerte, tudo que tinha para se expressar era o olhar.

Foi um longo tempo de recuperação. Primeiros movimentos, quatro meses em cadeiras de rodas, um tempo usando muletas e mais recentemente voltou a andar sem precisar de auxílios. O braço direito ainda não retomou os movimentos, por isso fotografa com apenas uma mão, a esquerda, sendo que nasceu destro. Ele leu livros de especialistas em neurociência e não se mostra otimista que possa recuperar os movimentos do braço tantos anos depois do acidente. 

Hoje com 31 anos, Rafael Bof ainda fala de forma lenta. Em algumas palavras troca as letras, mas nada que não se faça entender. Avisa que tem dificuldade com contas, pois parte do cérebro foi afetada. Às vezes se irrita consigo mesmo por não conseguir se expressar como queria. Pede calma, embora eu não esboce pressa ou impaciência. Resume a agonia: “Eu penso e as palavras não saem da boca”. Explica que teve que reaprender a língua e trabalhar as condições motoras. Além das sessões de fonoaudiologia, ajudou a volta aos estudos.

Por recomendação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), entrou no curso de Rádio e TV do Centro de Estudo Técnico (CEET) Vasco Coutinho, em Vila Velha, onde se formou como técnico. Mas seu interesse maior é pela fotografia. Aprendeu técnicas e o manejo das máquinas pelo YouTube, mas contou com ajuda generosa de fotógrafos mais experientes, como Fernando Madeira. Ainda sonha em estudar Fotografia, mas o curso é muito caro. Segue, porém, aprendendo e costuma fotografar quase todos os dias. Click. Rebobina.

Volta o filme. Com uma mão, a esquerda, Rafael Bof equilibra a câmera fotográfica e maneja todas suas funções. Exercita aquele que foi por tempos sua única forma de expressão, o olhar. Click. Por uma fração de segundo a lente escurece. 

Rafael acordou. Sentiu alegria porque depois de muitos anos, voltou a sonhar. Isso aconteceu muito recentemente, ele me conta, sentado na cama. Pergunto qual foi o último sonho, mas ele ri e prefere não dizer. Pode ser comprometedor. Mas fala sim de outro tipo de sonho: daquilo que almeja com seu trabalho. Sonha em conhecer outras culturas e fotografar em outros países. Quando foi ao Chile, primeira viagem sozinho, levou a câmera mas esqueceu a bateria. Acabou não registrando imagens. Mas já fotografou em Curitiba e Belo Horizonte. Tem preferência pelo preto e branco e lembra do quase-conterrâneo fotógrafo Sebastião Salgado. 

Vai construindo aos poucos um trabalho belo e relevante. Seu foco é fotografar pessoas com deficiência. Cresceu tendo um irmão com deficiência mental e ainda jovem viu a si mesmo enfrentando as sequelas do AVC.

 

“Já fotografei uma criança que teve um derrame. Pode acontecer em qualquer idade”, conta. Por meio do Centro de Reabilitação Física do Espírito Santo (Crefes) em Vila Velha e outros serviços do tipo em Vitória ele tem fotografado pessoas com diversos tipos de deficiências. O que mais marcou foi um psicólogo que trabalha, estuda, dirige sozinho com próteses nas pernas. 

Depois de muita batalha e inúmeras perícias, foi aposentado recentemente pelo INSS. “Algum dia vai chegar uma carta aqui registrando isso”, diz. Sente um certo alívio de não ter mais que passar por longos e dolorosos exames e perícias, embora conte que lhe avisaram que deve fazer perícia a cada três anos para provar que está vivo. Se olha, ainda jovem, agora aposentado. “É meio estranho, né?”.

As fotos de Rafael já participaram de 18 exposições em locais como academia, hospital, shopping, centros de atendimento a pessoas com deficiência, faculdade, ponto de cultura e na galeria da Assembleia Legislativa. O próximo local de exposição será o restaurante La Dolina, em Vitória, em data ainda a confirmar no mês de novembro.

Como a fotografia faz se sentir, pergunto. “Vivo. Viiivo!”, diz elevando a entonação da voz pela primeira vez em mais de meia hora. Para os acometidos por acidente vascular cerebral, AVC também virou sigla para A Vida Continua.

Mais sobre seu trabalho pode ser encontrado no site: https://rafaeldomingoss.wixsite.com/omemundo

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