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Inércia da Mesa Estadual reacende relevância da via judicial na luta quilombola

Ação do MPF obteve sentença favorável as comunidades há três anos, lembra Comissão Quilombola

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Leonardo Sá

A relevância do braço judicial da luta quilombola precisa ser rediscutida no atual momento de múltiplas forças que atuam pela regularização das mais de trinta comunidades que compõem o Território Tradicional Quilombola do Sapê do Norte, nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. A percepção vem das lideranças quilombolas que participam da mesa de negociações coordenada pelo governo do Estado, por meio da Secretaria Estadual de Direitos Humanos (SEDH), diante da ausência de acordo evidenciado na primeira reunião do ano, realizada de forma remota na semana passada.

Na ocasião, a Comissão Quilombola do Sapê do Norte apresentou a posição das comunidades diante da contraproposta feita pela Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose) em relação ao tamanho do recuo dos seus eucaliptais dentro do território quilombola. Enquanto a solicitação das comunidades foi o equivalente a 10 hectares por família – quantitativo já estabelecido como aceitável nos moldes da reforma agrária –, a multinacional respondeu com uma disposição de recuar apenas 2,4 hectares, quatro vezes menos.

“Para nós, famílias que estamos na luta pelo território há 40 anos, não podemos aceitar tão pouco para abrir mão dos processos que já estão em curso na Justiça e no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]”, explica Flávia dos Santos, integrante da comunidade de Angelim 2 e da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.

No Incra, estão em andamento dezenas de processos administrativos, de quase todas as comunidades já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, alguns em processo mais adiantado, como Linharinho, em Conceição da Barra, que já está com seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) quase ou já concluído, aguardando publicação em portaria. A superintendência estadual da autarquia afirma que desde 2023 foi iniciada uma força-tarefa para agilizar os processos em curso e garantir a regularização das primeiras comunidades até o final da gestão do atual governo federal.

Na Justiça, ao menos uma ação judicial caminha de forma favorável ao território quilombola. Impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF/ES) – Ação Civil Pública nº 0104134-87.2015.4.02.5003/ES – contra a então Fibria, o Estado do Espírito Santo e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), teve julgamento em primeira instância em outubro de 2021. Na sentença, o juiz Nivaldo Luiz Dias atendeu a três pedidos feitos pelo MPF.

Primeiro, “que seja declarada a nulidade dos títulos de domínio de terras devolutas outorgadas [à empresa], mediante fraude”. Segundo, que o Estado seja condenado “a titular as terras devolutas que reverteram ao patrimônio público estadual em virtude da declaração de nulidade, ocupadas tradicionalmente por remanescentes das comunidades de quilombos”. E em terceiro, “condenar o BNDES a não conceder financiamentos à Fibria S/A destinados ao desenvolvimento de atividades nas terras públicas objeto da presente demanda”. A fraude, denunciada pelo MPF e reconhecida na sentença judicial, decorre de processos de grilagem descritos na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Aracruz Celulose, realizada pela Assembleia Legislativa em 2002, que teriam sido executados pela empresa desde a década de 1970.

“A gente não sabe se a Suzano recorreu dessa decisão. Se recorreu, já foi julgado? Se não recorreu, a gente vai esperar até quando pra que essas terras voltem para as comunidades? O Incra já mostrou pra gente no mapa onde estão esses imóveis. O governo do Estado vai recorrer ou vai ajudar a fazer essas terras voltarem para nós?”, questiona a quilombola.

Sobrevivência e visibilidade

A negativa da Suzano em recuar seus eucaliptais nas áreas já certificadas e em processo de titulação compõe um conjunto de práticas violentas denunciadas cotidianamente pelas comunidades, que incluem intimidações aos moradores, contaminação da água e do solo com agrotóxicos, tentativas de cooptação e criminalização das lideranças e violações do direito de ir e vir das famílias

As Retomadas Quilombolas, que são iniciativas de ocupação do território após o corte de eucalipto pela empresa, são um alvo ainda mais perseguido, afirmam. “Nós fazemos as Retomadas como forma de sobrevivência, já que nossas comunidades estão cercadas de eucalipto, sem espaço para plantar nossas roças, para fazer a reocupação dos córregos e das nascentes que o eucalipto seca. E também como forma de pressão, para que o governo e a sociedade vejam a nossa luta, pela garantia dos nossos direitos”.

Violência que caracteriza a entrada da empresa no território, na década de 1960, quando a então Aracruz Florestal derrubou milhares de hectares de Mata Atlântica com correntões, dizimando a biodiversidade e expulsando as famílias quilombolas que ali viviam há gerações, conforme relatam testemunhas desse biocídio, verdadeiro desastre socioambiental prolongado, que também a ciência tem evidenciado a partir do século XXI, em relação principalmente à crise climática. Desde então, as que resistem em seus territórios, sofrem todo tipo de pressão e violência, sob a inércia dos governos que, ao contrário, continuam fornecendo subsídios milionários à empresa.

O Mestre Berto Florentino, do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra, é uma dessas testemunhas que preserva a memória viva desse processo de violência ambiental e social protagonizada pelo agronegócio do eucalipto no norte do Espírito Santo e, em contrapartida, mantém o trabalho de preservação ambiental e cultural das comunidades quilombolas.

No cotidiano de Mestre Berto, de lideranças como Flávia e de milhares de moradores do Sapê do Norte, desistir da luta não é uma alternativa. Como todo povo tradicional, as comunidades quilombolas têm o território não apenas como um recurso natural e fundiário que fornece poder econômico e político dentro da lógica capitalista de acumulação e exclusão, mas sim como parte de sua identidade e do seu próprio corpo, como abrigo e lugar de produção de vida, em honra à ancestralidade e respeito às futuras gerações.

“Esse território é nosso e nós vamos continuar lutando para que nossos direitos sejam garantidos. Seja na justiça, dentro do Incra, cobrando do governo do Estado ou dialogando com a sociedade com nossos projetos, com a proteção das nossas tradições culturais”, afirma.

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