Fotos: Leonardo Sá/Porã
Os filhos, a viuvez e a solidão não amedrontavam. Maria tinha, a seu favor, o temperamento forte e o gosto pelo trabalho, amalgamados em um dote culinário raro, com o qual sustentou os seis filhos, dias e noites enfurnada na cozinha preparando marmitas que alimentavam famílias e trabalhadores da Vila Rubim, bairro simples onde moravam, ao Parque Moscoso.
Já beirava a fronteira dos 40 anos quando conheceu Josué, oficial da Marinha Mercante do Brasil, um paraibano forte de 42 anos que passara os últimos 25 viajando pelo mundo, mas que, por algum motivo, encontrou em Vitória e naquela fluminense humilde e batalhadora um porto seguro. Com Josué dos Santos, Maria José dos Santos casou-se pela segunda vez.
A família mora numa boa casa à Rua Santo André, uma rua breve e pacata na mesma Vila Rubim ainda hoje pavimentada com paralelepípedos, recanto ideal para que ela e ele, até então dois pontos errantes na vida, ele mais que ela, obviamente, rumassem para um futuro mais luminoso para si e as crianças. A personalidade batalhadora da cozinheira e o anseio de enraizamento do marinheiro criaram, no mesmo bairro, o que é hoje um dos mais tradicionais estabelecimentos gastronômicos do Espírito Santo, o Restaurante Mar e Terra. O rígido regime de funcionamento de 24 horas por dia, com fechamento apenas às sextas-feiras, logo o transformou numa referência em Vitória.
É no meio desse cenário de esperança que no primeiro semestre de 1951 emerge no seio da família um evento potencialmente desestabilizador: até que ponto a prosperidade poderia resistir a um filho fora do casamento?
“A minha história eu não escondo para ninguém. Meu pai teve um caso extraconjugal e a minha mãe, que me adotou e registrou, era uma pessoa de uma cabeça além do tempo e teve a dignidade e o presente de Deus de pegar o filho da amante para criar. É uma coisa meio de novela, mas não tenho vergonha nenhuma de registrar. Muito pelo contrário, eu tive uma mãe maravilhosa, excepcional. Não poderia ter sido melhor”, conta Jorginho Santos.
O colunista social revela a história com orgulho. Não poderia ser diferente: revelar esse exemplo de abnegação da mãe de criação é reforçar o alicerce moral que há 40 anos resguarda sua atividade como jornalista e colunista social, 24 dos quais dedicados à Revista Class, publicação que, por um lado, formou um novo grupo de notáveis da sociedade capixaba, mas, por outro, sofreu politicamente, em especial durante a Era Paulo Hartung (2003-2010).
É curioso como, numa cidade cujas elites ainda hoje demarcam e preservam muito bem suas linhas fronteiriças, um personagem oriundo de um bairro de classe média baixa, habitado por trabalhadores humildes, migrantes esperançosos e vizinho aos mais requisitados lupanares da cidade, tenha obtido assimilação pelo grand monde capixaba.
Para Jorginho, crescer na Vila Rubim dos anos 50 e 60 teve pouco a ver com carência ou dificuldade. Dia desses, rememorando entre amigos, lembrou que só na Santo André daqueles tempos moraram 11 futuros médicos, exemplo prático da visão que carrega da Vila Rubim onde cresceu como um nascedouro de pessoas simples, dignas e dedicadas. “Minha história tem uma solidez muito grande em função da minha infância e adolescência. Em subúrbio, bairros mais humildes, as pessoas são muito mais solidárias. Eu vivi muito isso”, diz Jorginho, que trocou a Vila Rubim pela Praia do Canto há apenas 18 anos e cujos três filhos também cresceram nas ruas do bairro.
Jorginho só foi perceber que a vida poderia ser dividida em castas após se tornar um cronista dos hábitos da alta sociedade – esta seria uma descoberta mais endógena que exógena. A humildade de caráter herdada ainda no berço certamente é um fator determinante nesse sentido. Fator ainda mais determinante, no entanto, foi o padrão de vida que sua peculiar biografia acabou por lhe conferir: confortável desde cedo, um menino que, com os irmãos já bem encaminhados na vida, cresceu praticamente sozinho entre os pais e o restaurante.
Um padrão de vida que lhe seria de grande valor e utilidade na vida profissional. Jorginho estudou no Colégio Salesiano, o centro da formação intelectual dos filhos da elite capixaba. “Eu convivia com as pessoas de quem mais tarde noticiaria. Minha turma era dos filhos dos top de linha da cidade”, destaca. Se a doçura juvenil da idade escolar esterilizava controvérsias sociológicas, a crueza da vida adulta seria inexorável: Jorginho poderia ver dedos apontados para “aquele que vinha da Vila Rubim”.
“Eu senti, depois, como colunista, porque já eram os pais, os avós, aquela coisa de tradição, que é uma idiotice, mas ainda existe”, diz.
Ainda existe, mas hoje, esse homem de 65 anos, 39 de casamento e três filhos, após muitas edições e incontáveis linhas malditas – certamente, a parte mais suculenta da Class, em que Jorginho inocula humor e acidez na vida de certas figuras da fauna local – exibe segurança e serenidade com o que é e o que pensa.
“O grande problema do colunismo de hoje em dia é que eles botam colunista que não conhece ninguém. Então as colunas ficam falando de pessoas que não têm notoriedade nenhuma. Com você vai ficar falando de uma pessoa que não conhece? Que você não sabe como ela vive lá dentro?”, critica ele, leitor de 18 colunas de todo o Brasil, com predileção pela Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, e Ancelmo Gois, de O Globo.
É bom sublinhar que o padrão de vida confortável da juventude em nada se igualava ao patamar bem mais elevado de conforto e sofisticação que conheceria mais tarde no mundo da alta roda: este era absolutamente desconhecido.
Ainda hoje não é um milionário, mas vive comoda e dignamente; o único luxo que se permite são as viagens, quem sabe herança do pai marinheiro. No entanto, se assusta e se diverte com a paranoia ostentatória destes tempos de Facebook. Conta uma anedota de lavra própria: anos atrás, em uma viagem a Cingapura, postou uma foto ao lado de uma Ferrari na rede social prenunciada pela legenda: “Esse é o presentinho que me dei”.
Foi o bastante para uma tempestade de confetes na caixa de comentários festejando o mimo supostamente recém-adquirido – sem falar nas quase 500 curtidas. “Gente custa R$ 2 milhões, onde vou tirar esse dinheiro?! As pessoas acreditam em tudo. Se eu tivesse dinheiro, dificilmente eu teria. É um mundo de grande ilusão, as pessoas se enganam e enganam os outros e sem necessidade”, exclama, as sobrancelhas arqueadas.
Jorge Luiz dos Santos iniciou a carreira em 1976, aos 24 anos, substituindo a temida Maria Nilce no Jornal da Cidade, matutino diário de qualidade gráfica inferior cujo sustento estava no caráter polêmico da colunista. Até então, colaborava esporadicamente a pedido do amigo e editor do jornal, Joelson Fernandes, dando vazão a um hábito cultivado desde a juventude, compondo crônicas e comentando livros e filmes na página cultural. Convidar amigos para escrever era a saída para Joelson manter ativo um jornal sempre com a corda das dificuldades financeiras no pescoço.
Maria Nilce iria se ausentar por 10 dias para se submeter a uma cirurgia plástica no Rio de Janeiro e seu substituto habitual, Nirlan Coelho, já havia se mudado para o Rio. Jorginho nunca havia lidado pessoalmente com a colunista quando o telefone da sua casa tocou trazendo o convite para a substituição. “Olha, eu não tenho experiência nisso”, respondeu Jorginho a ela.
“Quando voltou, ela disse assim: ‘Eu preciso que você seja um colaborador, um colunista da cidade. Você nasceu colunista’”. Embora o elogio tenha lhe caído bem aos ouvidos, Jorginho não balançou. Respondeu-lhe que precisava visitar a irmã em Belo Horizonte (MG) e que, na volta, a cabeça mais arejada, discutiria a proposta. Jorginho aceitou e assumiu uma coluna dirigida ao público jovem. Após seis meses, uma vez que a coluna não era assinada, Maria Nilce disse que as pessoas na cidade perguntavam quem, afinal, assinava a coluna.
“Vamos passar a botar seu nome”, decidiu Maria Nilce. Assim nasce o colunista Jorginho Santos.
Para Jorginho, Maria Nilce detectou traços de si mesma naquelas 10 colunas que o pupilo escrevera durante sua licença. “Era um pouco do estilo dela, um colunismo sem puxa-saquismo, bem real”, pontua.
Foram oito anos no Jornal da Cidade e oito anos de convivência marcante com Maria Nilce. Ele reconhece o gênio difícil da colunista, mas, sobretudo, celebra seu “valor extraordinário” como mulher de trabalho, cujo gosto pela polêmica sustentava o jornal. “Hoje, mais que nunca, vivendo para manter a revista, eu entendo o que ela passava. Ela enfrentava o governo, que cortava verba deles. Passei momentos bens difíceis com eles”, lembra.
Em 84, ele recebe uma ligação de um velho amigo dos tempos do Salesiano: Huguinho Borges. Na pauta, um convite tentador para ser discutido em reunião na Rádio Capixaba. “Estou precisando de você. Acabamos de comprar O Diário e queremos você como colunista”, disse-lhe, finalmente, Huguinho. “Gostaria, mas primeiro tenho que conversar com Maria Nilce”, respondeu Jorginho.
Ela não só aceitou, como estimulou a mudança. Sem espaço na mídia capixaba – um truísmo, dado seu estilo, um incômodo para a nobreza capixaba – Maria Nilce vislumbrou ali a valiosa conquista de um território a mais em um cenário adverso. Reflexão corretíssima, de tão límpida e sagaz. Na prática, no entanto, a mudança turvou, corroeu e envenenou uma parceria e amizade até então tão suave quanto inabalável.
A estreia de Jorginho Santos em O Diário foi anunciada em tom festivo por um influente colunista social da cidade: “Surge um novo colunista na cidade, o nome dele é Jorginho Santos e não é de se mandar para Cantagalo”. A referência, aqui, era uma expressão cunhada por Jorginho – “Fulano não é de se mandar para Cantagalo” – após um episódio de violência registrado no morro carioca.
Maria Nilce não gostou. Pegou o telefone e encurralou o pupilo: você vai mudar de lado também? Jorginho apenas contemporizou. Dias depois, uma amiga do colunista convida Jorginho para uma vista ao escritório dele. “Foi um erro meu. Não sei te dizer por quê. Mas ali fiquei sendo a pessoa mais badalada da cidade, por que todo dia era um motivo. Ele começou a badalar muito eu e minha mulher porque ele instigava o ódio dela. Ele queria que eu brigasse com ela”.
O erro dele foi ter aceitado o convite. Mais alguns dias depois, ele abriu o jornal e viu uma foto acompanhada da legenda: “Hoje recebi a visita de Jorginho Santos”. A amizade com Maria Nilce não resistiu e nunca seria restabelecida: poucos anos depois, em 89, a colunista seria assassinada na Praia do Canto, notícia que Jorginho recebeu pela TV ainda na mesma manhã em que a colunista fora executada, indo para a academia de ginástica. Foi um dos mais pavorosos crimes de mando do Espírito Santo.
Como o que começa mal, costuma terminar mal, a passagem por O Diário revelou-se inexpressiva: o jornal faliu apenas dois anos depois. Jorginho, então, foi trabalhar no Correio Popular, jornal sediado em Campo Grande, Cariacica, por dois irmãos que receberam o maquinário de O Diário a título de indenização.
Era uma época, ele lembra, de movimento intenso de festas e eventos na sociedade, fato que suscitou-lhe uma mudança de perspectiva em sua estratégia de registro jornalístico. Queria algo diferente, enfim, uma publicação que abrangesse aquela efeverscência. Levou a ideia de uma retrospectiva da sociedade ao jornal: “Ah, Jorginho, tem muita foto, você vai precisar arranjar um patrocínio”.
O colunista nunca tinha faturado nada até então; trabalhara sempre na qualidade de colaborador. Topou o desafio e foi atrás. Uma das tentativas foi com o empresário Salim Amar, a quem apresentou o projeto em um almoço. “Quanto você vai ganhar com isso?”, estocou sem rodeios o empresário. “Nada”, devolveu Jorginho. O empresário retrucou com uma proposta: Vitória precisava de uma revista exclusivamente social e ele, Jorginho, era o homem certo para constituí-la. “Os cinco primeiros números, se der prejuízo, eu banco”, garantiu Amar.
Jorginho saiu do almoço mais assustado que empolgado. A responsabilidade pesou. Ponderou com a esposa, que lhe transmitiu calma, esperança e incentivo. Hoje fala do rebento com um orgulho indescritível. “São 24 anos, 326 exemplares. Nunca deixamos de sair. Periodicidade direta. Nunca aconteceu isso no Estado”, diz, sobre a Revista Class.
As cinco edições iniciais não deram prejuízo. Nem lucro. O melhor indício é que Amar botava os anúncios, mas não precisou enfiar a mão no bolso para socorrer a empreitada. “A ele eu devo o nascimento da Class”, homenageia Jorginho. Hoje, o cenário não é tão diferente. “Não tô ganhando dinheiro, tô sobrevivendo”, diz.
O humor talvez seja o principal traço que diferencia o colunismo social da Class em relação aos congêneres capixabas. Jorginho passa ao largo do jardim florido e perfumado da bajulação fútil com um humor às vezes ácido, noutras irônico, mas sempre duro, que lega ao ridículo certa fauna política e econômica do Estado. As “Linhas Malditas”, reunião de notas curtas e envenenadas em que ele comenta, noticia ou adianta um fato, vez ou outra são arrematadas por um “Quá… quá… quá…”.
“Consegui fazer colunismo diferente porque sempre foi muito claro, não bajulo ninguém, porque ninguém paga minhas contas”, diz. Jorginho acredita que sua diferença está exatamente na sua independência, ou, de outro modo, na crença de que evitar a adulação é uma obrigação moral. Mas, se por um lado ele soube dosar a tinta da caneta, por outro, não. Faz uma espécie de mea culpa: reconhece que já foi um “colunista muito cruel”, que escreveu coisas que hoje não teria coragem de escrever.
Atribui à esposa o certo estado de leveza de alma que atingiu: “Você está criando inimigos sem necessidade”, ela costumava aconselhar. O gosto do poder, que um dia já sentiu, já não inebria: “É preciso colocar na cabeça que, tudo bem, em alguma coisa você sabe que é bom, mas você não é tudo aquilo que todo mundo diz, você não é melhor que ninguém”.
O início de carreira da Class foi um aprendizado em que Jorginho teve a certeza de que errou com Maria Nilce. Ceder às investidas do colunista que parecia saudar sua estreia em um novo jornal, longe das asas da preceptora, significou não apenas romper o elo afetivo e profissional com quem lhe iniciou no colunismo social, mas também preparar o maquinário da própria armadilha.
Segundo Jorginho, quando abriu a Class, ele foi vítima do mesmo jogo, os mesmos ardis de enforcamento financeiro. “Ele começou a chamar pessoas da sociedade e pedia que não anunciasse na revista. Eu descobri e senti tudo o que ela tinha sentido”. Jorginho conta também que o colunista, que sempre desfrutou de boa circulação entre a tradicional alta-roda local, ameaçava faltar eventos caso Jorginho e a esposa fossem.
Foi um baque, do qual Jorginho só se recobrou quando teve o estalo de fazer o que chama de “renovação da sociedade”, ou seja, formar um novo grupo de pessoas que atendam seu critério de notoriedade. “É o médico que desempenha bem seu trabalho, o verdureiro que trabalha com produtos de qualidade. Isso merece ser noticia porque o cara está fazendo diferente e isso é bom para a sociedade inteira. Não é o cara que ganhou que é milionário e ninguém sabe como ficou rico”, define.
Funcionou. “Hoje faço um evento e levo as pessoas que ninguém consegue levar na cidade”.
A Class caminhava para a puberdade quando ela e seu fundador se viram tragados pelas denúncias da Era Gratz. Foi uma tempestade, um episódio que empurrou Jorginho para o círculo das vítimas do maniqueísmo hartunguiano – quem não estava com o então governador em primeiro mandato no combate à corrupção que envenenava as instituições capixabas, estava contra ele.
Para Jorginho, seu pecado foi manter-se fiel às próprias convicções e visitar o ex-presidente da Assembleia Legislativa José Carlos Gratz, preso em setembro de 2003, desde a primeira quarta-feira de liberação de visitas na delegacia da Praia do Canto. Hartung não perdoaria um gesto de solidariedade em favor daquele em quem personificou todo o mal que deteriorava o Espírito Santo.
Jorginho lembra uma porção de fotógrafos posicionados na rua ao descer do carro e caminhar para entrada da delegacia. Viu câmeras apontadas em sua direção. No dia seguinte, viu-se no jornal. “A Gazeta botou meia página de foto minha, na página policial, dizendo: ‘O colunista Jorginho Santos foi visitar Gratz’. Como se isso fosse me intimidar”.
Resultado: Jorginho passou a visitá-lo toda quarta-feira, um gesto não propriamente para Gratz, mas para a esposa dele, Rita, outra filha da Vila Rubim, de quem Jorginho sempre foi amigo. A resposta veio rápida. A revista viu-se acusada em jornais de receber verba da Assembleia Legislativa durante a Era Gratz para fazer festas com “dinheiro público”.
“Desde quando patrocino é crime? Se todo mundo fazia, por que só eu tinha que pagar?”, questiona. Jorginho sofreria oito anos de enforcamento financeiro promovido pelo atual governador em seus dois primeiros mandatos. “Mas me deu a oportunidade de conhecer amigos, que me fortaleceram, que falavam ‘vá em frente’”, destaca.
Jorginho esperou para dar sua resposta. Mas ela veio. Nas eleições de 2014, republicou na revista a matéria de Século Diário denunciando a mansão que Paulo Hartung, então candidato ao governo, havia construído em Pedra Azul (Domingos Martins), mas não declarado à Justiça Eleitoral. Foi surpreendido pelo sumiço em massa da edição nas bancas: soube imediatamente que um carro parava em cada banca comprando todas as edições. Mas, daquela vez, Jorginho havia dobrado a edição.
Com 40 anos de carreira e 24 de Class nas costas, Jorginho hoje não quer mais briga. Só quer paz: mas, adverte, desde que o deixem em paz.