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Mantenha a cidade limpa

Texto: Henrique Alves

Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
O encontro com Adijefison e Rosângela foi numa praça, este outrora ícone urbano da civilidade, hoje rebaixado à subclasse de não-lugar. Às 20h dessa sexta-feira (21), nos pontos de táxi, ônibus, no carrinho de churrasco ou no singelo pula-pula, os indícios de presença humana apenas circundavam a pracinha de Jucutuquara. 
 
Rosângela mira alguma coisa e suspira: “Esse lugar é da maior importância para nós”. Ela e Adijefison casaram-se ano passado, três anos após o fio do destino ter cosido uma história de violência doméstica a outra de tráfico de drogas.  
 
 
Em 2009, lutavam contra o crack no Centro de Prevenção e Tratamento de Toxicômanos (CPTT) de Vitória, em Ilha de Santa Maria. Depois pernoitavam na hospedagem da prefeitura em Jucutuquara. Como a pracinha ficava a meio caminho entre um e outro, era o local ideal para um chamego. Os bancos, o jardim, as árvores. O ruim é que tinham só até às 22h, quando o abrigo fechava. 
 
Em 2011, Adijefison e Rosângela assumiram a coordenação do Movimento Nacional de População em Situação de Rua do Espírito Santo (MNPR/ES). “Pela situação que nós passamos, a gente viu que é possível, sim, a pessoa ter uma vida, assim, digna. Voltar a ter uma inserção social”, avalia Rosângela, contendo a turbulência infantil do pequeno Pedro, de dois anos, filho adotivo do casal.  
 
Articulada, a coordenadora condena o empenho de certos setores de Vitorinha em enodoar os moradores de rua com a pecha do crime e da droga. 
 
“Estão exigindo que o prefeito retire. Só que essas pessoas têm que ser acolhidas, porque o que tem que ser retirado é o lixo. Nós somos uma parcela que está vivendo uma situação de extrema vulnerabilidade. Mas se o prefeito não admite, não aceita, é omissão do município, do Estado”, diz.
 
Rosângela afirma que não existe política de saúde (ela ressalvou o CPTT), trabalho, habitação, lazer para os moradores de rua. “Tem que ter um olhar diferenciado porque o que está acontecendo é isso mesmo, higienização”.
 
Desde o dia 30 de janeiro, quando moradores e comerciantes do Centro de Vitória fizeram uma manifestação por segurança, a Guarda Municipal recrudesceu um certo tipo de abordagem. “Eles falaram que a cidadania, segurança, saúde e serviço social estão juntos fazendo essa abordagem… É mentira”, acusa Rosângela.
 
Desde então, chegam a ela relatos de excessos da Guarda Municipal. “A Guarda está vindo constantemente, cinco seis horas da manhã, com chute”. O fato mais recente chegou-lhe quinta-feira (20) e ocorreu no Centro. Ela diz também que o serviço de limpeza pública, da Secretaria Municipal de Serviços (Semse), promove um autêntico asseio desferindo jatos d’água sobre pessoas ainda deitadas e dormindo.
 
“Eles falam em abordagem e direitos humanos. Não é direitos humanos você mandar a pessoa levantar, mandar a pessoa sair e se a pessoa não sair, dar tapa na cara, dar chute”.
 
Na Grécia Antiga, se você não fosse adulto, grego, homem e livre, você seria um belo nada. Na Idade Média, se você não pertencesse à nobreza ou ao clero, idem. E hoje? “Hoje você tem uma concepção de que o direito a ser está relacionado a uma inserção no mercado: se a pessoa produz ou se consome. Se ela tem alguma colocação nessa relação de mercado, ela é reconhecida como ser”. 
 
Maurício Abdalla, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mora na filosofia e mora no Centro de Vitória. O professor analisa a questão tanto por conceitos quanto por cenas da vida cotidiana. 
 
“É um problema de fato. E incomoda. É inseguro para você passar. Eles brigam, já vi caso de pessoas sendo espancadas na Costa Pereira. Isso tudo é real”, relata. É um prisma privilegiado. O Centro, para alguns, transformou-se em símbolo de perdição irremissível. 
 
Ninguém esconde o fato de que uma atmosfera de insegurança envolve a presença de moradores de rua. Mas entre isso – de novo, um fato – e tecer um discurso de legitimação da limpeza social, vai uma boa distância. E o que se faz? Encurta-se a distância: a consequência vira a causa. 
 
“Existe usuário de droga? Existe. É a grande parcela. Tem pessoas que cometem furtos? Tem. O que não pode é condenar toda uma população, porque cada um tem sua história”, pondera Rosângela. “A falta de uma perspectiva estrutural faz com que as pessoas tratem a questão como um caso de limpeza pública”, critica o professor.
 
 
A inversão de valores é o primeiro passo para a solução higienista. A psicanalista e psicóloga Marcela Serrat Freire trabalha há 12 anos com moradores em situação de rua. Segundo ela, quando os usuários de droga estão muito entregues ao vício, eles já se colocam numa situação de “dejeto”.
 
 “A minha preocupação hoje com a internação compulsória, com essa varredura da cidade, é reafirmar esse lugar que ele já se colocar, um lugar despotencializado”, pondera. “As políticas públicas precisam se dedicar intersetorialmente”, diz. 
 
Oferecer saúde e segurança – traduzindo, internação ou prisão – não é suficiente. Políticas de habitação e geração de renda também entram aí. “Quando ele sai de uma internação e não tem nenhum suporte lá fora, ele vai voltar”, lembra Marcela. 
 
Em 2009, um decreto instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Entre seus 14 objetivos está o de assegurar o acesso a serviços que integram políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda. 
 
A também psicóloga Raquel Medice diz que é difícil traçar um perfil do morador de rua. “Não é uma população homogênea Você pode pegar por grupos, como ‘todos os que têm nível superior’”, diz. 
 
Por isso, ressalta-se a importância de que os tratamentos sejam acompanhados caso a caso por uma rede de serviços intersetorialmente integrados. “Um caso representa uma rede de serviços para tratar caso a caso. É por isso que você não tem uma massa de pacientes. Cada caso você vai discutir um projeto, um tratamento”, explica. 
 
 
Não importa a complexidade do problema: a retórica do medo elabora um diagnóstico com clareza e rapidez. Aí mora sua eficácia. A mutação da causa em consequência engendra um incômodo estranhamento com aquela figura andrajosa sem dente e sem documento.
 
“Quando você cria um inimigo, você cria aquela coisa maniqueísta: se o problema é o inimigo, basta combater o inimigo. Então se o problema é o Lex Luthor, tem lá o Super-Homem para enfrentar o Lex Luthor; se o problema é o terrorismo, está lá os Estados Unidos para enfrentarem o terrorismo”, diz Abdalla. 
 
E se a presença desse outro tão, assim, diferente, embora também um vertebrado, primata e bípede, se a presença desse outro desarranja a santa paz e instala o demônio da incerteza, há pelo menos o alívio de que a polícia reaverá a ordem perdida e a prefeitura encaminhará o desconhecido a um local mais adequado. Tipo em Mário Cypreste.
 
“A alternativa da rua é uma alternativa à falta de alternativas”, diz Raquel. Não é um lenga-lenga comiserado. Eles não se colocaram na relação de mercado, de que lá em cima falou Abdalla, exigida pela vida contemporânea. Não produzem, tampouco participam da festa do consumo. “Por isso, são não-seres”, diz Abdalla. 
 
Adijefison Roseno foi um não-ser por dois anos e meio. Mais contido que a esposa, diz tudo em voz baixa. Fez 30 anos no último dia 12 e está há nove meses sem usar crack, fruto de uma recaída de dois dias. Atualmente ganha a vida como borracheiro
 
Em 2006, era casado e morava com a mulher e os dois filhos em Gurigica. Trabalhava à noite como vigilante de uma empresa particular e recorria à cocaína para manter-se alerta. Daí veio o crack.
 
A pedra abalou a vida familiar. Adijefison saiu de casa e deu o primeiro passo em direção à rua. Não demorou e deu o segundo: entrou no tráfico para sustentar o vício. “Eu vendia e usava, vendia e usava, vendia e usava”, lembra. Teve que deixar o morro às pressas. Quase foi morto. Entre 2006 e 2009, viveu tendo o céu como teto e o crack como pão. Centro, Rodoviária, Vila Rubim, Parque Moscoso, nas praias. 
 
“A gente sabe que hoje as abordagens só têm sido feitas com a Guarda Municipal. Não tem uma equipe multidisciplinar, não tem uma equipe intersetorial”, diz, enfática, Rosângela, apontando a mesma solução que a Marcela. 
 
Onde não há políticas públicas, há a religião. Hoje o casal é evangélico e essa vida que qualificam como “mais espiritual” deu-lhes o alento decisivo para encarar o vício e se reerguer dos escombros.
 
Até 2008 Rosângela trabalhava na área de enfermagem do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória. Já usava cocaína há algum tempo e bebia há mais tempo ainda.
 
O crack bateu à sua porta por problemas conjugais – no caso dela, um eufemismo para violência doméstica. Inúmeras vezes prestou queixa na Delegacia da Mulher contra o companheiro. “A gente se batia, né, a bem da verdade. Eu não dava mole também, não”. Aí se envolveu com outro homem, um traficante usuário de crack. 
 
A porta se abriu para a droga e para a rua. Ela suspendeu a cocaína e limitou-se aos cachimbos. Era o suficiente. Viveu na rua por um ano, entre 2008 e 2009, no trecho da praia em frente ao Bob’s da Praia do Canto. As duas filhas ficaram com a avó.
 
Aos 37 anos, Rosângela não sabe o que é crack desde 2010. Após internações inúteis no CPTT e, sobretudo, após um clarão de lucidez iluminar o próprio desamparo – família, filhas, casa, emprego, tudo tinha desmoronado – veio a reação. Ela estava “em uso” quando decidiu se internar. Conseguiu uma vaga no Hospital da Polícia Militar (HPM), onde ficou por três meses.
 
 
O MNPR/ES realiza na próxima sexta-feira (1), a partir das 17h30, uma vigília na Praça Costa Pereira em protesto contra os faxineiros de plantão. “Se as pessoas tem uma clareza achando que, como sai no jornal, vai se acabar com a população de rua, só se fizer um genocídio. Porque não vai. Nesse mundo que a gente vive, se você não produz, você não é nada”, fala a ex-moradora de rua e hoje monitora social Rosângela Cândido.   
 
Como diz Abdalla, na nossa sociedade, o nada existe. Na praça, no sinal ou te impedindo de tomar uma cerveja no bar sem ser incomodado. É um nada que incomoda. 

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