Fotos: Leonardo Sá/Porã
A Prefeitura de Vitória foi a única instituição que descumpriu o ajuste de conduta mútua acordado na reunião preparatória ao cumprimento da reintegração de posse, marcada para este domingo (23), do antigo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), no Centro. A reunião aconteceu em 27 de junho. O Executivo municipal, representado na ocasião pelo secretário de Segurança Urbana, Fronzio Calheira Mota, e o assessor da Secretaria de Gestão (Seges), Marcos Delmaestro, comprometeu-se a garantir um local para a guarda dos bens dos ocupantes que não tivessem para onde destiná-los.
A omissão da prefeitura transtornou todo um planejamento e adicionou mais uma dose de aflição e tristeza a famílias já em situação de aguda fragilidade social. O problema só foi contornado no domingo pela manhã graças ao esforço dos oficiais de justiça federais, dos membros da ocupação e da solidariedade da Fundação Beneficente Praia do Canto (FBPC), vinculada à Igreja Batista da Praia do Canto, e do Colégio Agostiniano, que cederam espaço para abrigar os pertences das famílias.
Nenhum representante da prefeitura acompanhou o processo de desocupação, iniciado sábado (22) e concluído neste domingo. Cerca de 10 foram obrigadas a dormir no IAPI de sábado para domingo em razão da indefinição de local para a guarda dos bens. Ao todo, pelo menos 15 não tinham também lugar para ficar. Os oficiais de justiça federais registrarão em certidão que a prefeitura municipal não enviou representantes para acompanhar a desocupação.
Durante todo o sábado (22), oficiais de justiça da Justiça Federal, representantes da Superintendência do Patrimônio da União no Espírito Santo (SPU-ES) e do pelo Comando de Polícia Ostensiva Especializada (CPO-E) da Polícia Militar (PMES) tentaram contactar representantes da Prefeitura de Vitória. Foram ignorados. A atitude indignou membros da PMES. Responsável direta pela execução da reintegração, a polícia planejou com União, estado, município e ocupantes o esvaziamento do prédio ainda no sábado para evitar ações incisivas no dia seguinte.
Fronzio Calheira Mota, Marcos Delmaestro, a secretária municipal de Assistência Social, Iohana Kroehling, e a secretária municipal de Cidadania e Direitos Humanos, Nara Borgo Cypriano Machado, não responderam ligações, nem mensagens de texto por celular. O vereador Roberto Martins (PTB) ligou para Nara e enviou mensagens de texto ao prefeito Luciano Rezende (PPS) e ao grupo da base do prefeito na Câmara. “Silêncio mortal”, disse.
A ata da reunião preparatória promovida pelo CPO-E é límpida: “O Sr. Cel. Fronzio Calheira informa que sobre o transporte e alocação dos bens dos ocupantes cederá área do Parque ‘Tancredão’ para a guarda provisória”. As assinaturas de Calheira Mota e Delmaestro constam entre as 32 que convalidaram a reunião, cujo objetivo, entre outros, era “viabilizar junto aos órgãos envolvidos prévia disponibilidade de apoio logístico, tais como assistência social, serviços médicos, transporte adequado e local para eventual guarda dos bens das pessoas envolvidas”.
A SPU-ES disponibilizou quatro caminhões de mudança entre as 8 e as 18h de sábado e três caminhões no domingo para o transporte dos pertences das famílias. A PMES isolou o Centro apenas com homens do Batalhão de Trânsito. Nenhum policial fardado circulou pela área do IAPI; integrantes da Companhia Independente de Missões Especiais (Cimesp) ficaram longe dos olhos das famílias.
A ideia era oferecer tranquilidade à desocupação, que praticamente transcorreu sem incidentes.
Antes das 8h de sábado (22), os pertences das famílias que ocupavam os 11 andares do IAPI já se espalhavam pela entrada do edifício. O movimento de desocupação iniciado quinta-feira (20) esvaziou em um terço o número de ocupantes que desde 6 de maio estavam no prédio. Tal como a PMES, a coordenação do movimento e as famílias sem teto compartilharam a prudência de esvaziar o prédio antes deste domingo. Temia-se um desfecho amargo para a ocupação; A resistência poderia expor crianças e idosos ao trauma de bombas de gás, spray de pimenta e dano psicológico.
Por isso, já sábado de manhã, apenas 50 famílias ainda restavam no local, das quais a maioria conseguiu ainda agarrar um último fiapo de sorte, conquistando por parente, amigo ou conhecido – ou, raro, alugando uma casa – um lugar para ficar, ainda que momentaneamente. As demais 15 famílias, nem isso: estas não vislumbraram outra saída que não dormir mais uma noite no IAPI. Famílias e apoiadores criticaram a ausência das secretarias municipais de Assistência Social e Direitos Humanos para assistir esses casos extremos de vulnerabilidade.
O governo do Estado também não enviou representantes, embora Alessandro Daros, da Secretaria de Direitos Humanos (SEDH), tenha participado da reunião preparatória.
A notícia de que não havia lugar para a guarda de bens surgiu ainda na manhã de sábado. Boatos davam conta de um galpão na Avenida Vitória e do Parque Tancredão. Nada confirmado. As famílias em agonia, então, pressionaram os dois oficiais de justiça federais e um policial militar da CPO-E que acompanhava a desocupação, para contornar o problema.
Mesmo excedendo as respectivas alçadas, os oficiais e o policial tentaram contato com membros da Prefeitura de Vitória. Em vão.
Dezenas de caixas de papelão, outras dezenas de sacolas, geladeiras, fogões, colchões, camas desmontadas, botijas de gás, cadeiras compunham as cenas finais da Ocupação Chico Prego, o mais vigoroso movimento de luta por moradia no Espírito Santo no século 21. O movimento começou no início de abril com 700 famílias demarcando lotes em terreno entre os bairros Grande Vitória e Universitário, na Grande São Pedro, e que depois ocupou a cantina da Casa do Cidadão, em Itararé. Organizado, ocupou e executou uma grande operação de limpeza no IAPI, prédio esquecido pelo poder público há anos.
A partir das 8h, as escadas do prédio foram dominadas pelo sobe e desce de ocupantes e funcionários dos quatro caminhões de mudança disponibilizados pela Superintendência do Patrimônio da União no Espírito Santo (SPU-ES) que se revezavam no estacionamento da Praça Costa Pereira. Os veículos realizaram ao todo 18 viagens no sábado.
Sábado (22)
O rosto de Laura Nascimento refletia a atmosfera da desocupação: era um quadro de calmaria pós-tempestade, em que se entrevia um traço remoto de tristeza e outro, mais marcante, de resignação. “Eu chorei muito quando soube da reintegração. Mas vai adiantar o quê?”. A notícia da reintegração saiu em 30 de maio.
Ela ocupava um cômodo no sétimo andar com os cinco filhos e é uma das pessoas cujo destino, como tantos dizem ali, “só Deus sabe”. Moravam em uma casa de quarto e sala em Nova Palestina pela qual pagavam R$ 450 de aluguel. Divorciada, mantinha a família com os R$ 496 do Bolsa-Família e rendimentos que angariava com faxinas domiciliares.
A vizinha de andar, Miriam Alves, ocupava um cômodo com os quatro filhos. Mineira de Ipatinga, a cuidadora de idosos é uma exceção no IAPI: tem emprego. Cuida há oito meses de uma senhora em Vitória. Mas apenas o aluguel da casa em que morava em São Pedro V com os quatro filhos consumia-lhe metade dos rendimentos. Quando somava água, luz e alimentação, a conta estourava.
“Às vezes, pocava o chinelo de um filho e eu tinha que pegar do outro. Às vezes comprava arroz e o feijão, mas faltava o óleo”. Também não sabia onde guardaria os pertences. Sabia menos ainda para onde iria. “Só Deus sabe”, disse, com um riso de resignação.
Um pouco mais sorte teve o pintor Ismael Oliveira. Na manhã de sábado, em seu cômodo no segundo andar, assistia um programa evangélico na Buster 20 polegadas com a esposa e os filhos, uma menina de três e um menino de seis anos. Os pertences estavam reunidos em uma dezena de caixas de papelão e sacolas. “Se eu tivesse emprego, não estava aqui sendo humilhado”, lamenta. A família morava em uma casa de tábua em Joana D’Arc, Vitória, onde pagavam R$ 350 de aluguel.
Mas o baiano de Eunápolis perdeu o emprego e sustenta a família há dois anos com bicos. O despejo veio em seguida. A ocupação foi a única saída. “Aqui eu ficava mais tranquilo para sair durante a semana e procurar emprego”. Não tinha para onde ir até sexta-feira (21), quando conheceu uma moradora do Centro que, condoída com a situação das famílias, disparou mensagens no celular no grupo da igreja buscando ajuda. Resultado: conseguiu uma casa em Cobilândia para três famílias, como a de Ismael. A única preocupação é conseguir dinheiro de passagem para levar os filhos para a escola, em Joana D’Arc.
Às 19h, os portões do IAPI foram fechados. As famílias restantes ficaram na área de entrada do prédio, onde ainda repousavam inúmeras caixas de papelão, sacolas, eletrodomésticos e mobílias. Os oficiais de justiça federais disponibilizaram água e alimentação para adultos e crianças naquela última noite. Na Costa Pereira, Laura estava com uma filha para um passeio pelo Centro. O céu estava limpo, fazia um frio ameno. “Aqui aprendi a lidar com as situações difíceis da vida”, disse.
Domingo (23)
A Costa Pereira amanheceu isolada pela PMES. Veículos do Batalhão de Trânsito interditaram o trânsito de veículos nas ruas Treze de Maio, Barão de Itapemirim e parte da Rua do Rosário. Veículos do Corpo de Bombeiros estavam estacionados na praça. Poucos pedestres circulavam pelo local. O clima ainda era de tranquilidade.
Às 9h, um círculo amplo com 50 pessoas de mãos dadas formou-se no passeio entre o Teatro Carlos Gomes e o IAPI para rezar o Pai Nosso. Em seguida, o grupo entoou com palmas uma canção-símbolo da luta por moradia, cujo refrão é alentador: “Nosso direito vem, nosso direito vem, se não vem nosso direito, o Brasil perde também”. Defensores públicos da União e do Estado, além de estudantes e professores da Ufes, acompanharam as últimas horas de ocupação.
Havia a tranquilidade, mas havia também a tristeza silenciosa. Na penumbra da área de entrada do edifício, Lourival Gonzaga fixava os olhos em algum lugar distante. Baiano de Salvador, já distribuiu 20 currículos nos últimos meses, o que inspirou-lhe a frase lapidar. “Eu sou assim. Baiano não escolhe serviço”. Uma aula de Brasil. Praticamente ninguém no IAPI encontrou abrigo no mercado de trabalho às respectivas especializações. A vida de bico em bico, ali, é regra. Lourival é jardineiro, mas a última ocupação foi numa empresa de limpeza, onde era auxiliar de serviços gerais.
Além do desemprego e da falta de moradia, também enfrenta a solidão. “Não tenho nenhum parente aqui. Sou eu, sozinho, e Deus”. O filho, de 17 anos, ficou na capital baiana. Lourival ocupava um cômodo, sozinho, no oitavo andar. Demitido, teve que deixar a casa em que morava, também sozinho, em Bairro da Penha por R$ 350 mensais. É mais um que não tem para onde ir.
José Antônio Ribeiro também vivia sozinho no IAPI. Ocupava um cômodo no sétimo andar. Nascido em Iúna, região do Caparaó, morava em Santa Martha com a esposa, o filho de três anos e dois enteados por R$ 550 mensais. Tiveram que entregar a casa, mas um amigo acolheu a família em Amarelos, Guarapari. “Agora estou desesperado, porque eles vão ter que sair de lá também”. O homem já pediu o imóvel de volta. “Eu não tenho para onde ir e nem dinheiro”. Eletricista, conta com orgulho que tem 22 anos de carteira assinada.
Camisa cinza, calça e chinelos, Geciel cantava à capela um louvor entre duas robustas colunas e atrás de uma pilha de caixas de papelão. Às vezes fechava os olhos e apontava para o céu, erguendo ainda mais fervorosamente a voz. De repente, as lâmpadas piscaram, como em agonia rápida, e se apagaram. O local ficou em penumbra; gritos açoitaram o ar; Geciel interrompeu o canto; uma mulher olhou desesperada para o teto.
Geciel Martins tem 56 anos. É negro, baixo e encorpado. Os fios brancos dominam cabeça. Divorciado, ocupava um cômodo, sozinho, no quinto andar. A esposa e os três filhos moram em Feu Rosa, na Serra. É auxiliar de serviços gerais, mas amarga dois anos de desemprego. O curso de porteiro oferecido pelo Senac no Sambão do Povo em 2016 não rendeu fruto. Deixou a casa do irmão em São Pedro, onde morava de favor, e se juntou à ocupação em São Pedro. “Só Deus sabe o meu destino”, disse ele, que procura lugar para morar.
Lourival, José e Geciel integravam o grupo dos aflitos com o destino dos pertences. A primeira mão foi estendida pela Igreja Batista da Praia do Canto, com o pastor Cláudio Quintes, da Fundação Beneficente Praia do Canto, em São Pedro. Ele acompanha a ocupação desde o início e disponibilizou de imediato salas, um galpão e um ginásio para o abrigo dos bens das famílias. “Chega de ignorar o direito dessas pessoas, de tratá-las como ninguém. Não dá mais para ignorar o direito à moradia delas”, desabafou.
A outra mão foi estendida pelo irmã Rita Cola, do Colégio Agostiniano, na região do Parque Moscoso. A instituição ofereceu o ginásio de esportes para receber os pertences das famílias.
Às 15h deste domingo, um grupo de mulheres negras, mães e filhas, restaram sentadas em um sofá e em bancos e cadeiras, ladeando geladeiras, fogões, colchões, TVs de tubo, uma bicicleta infantil e uma pilha de caixas de papelão. Conversavam, mostravam os celulares umas às outras, folheavam jornais. Laura e Mirian estavam entre elas, ainda à espera de um lugar para morar.