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‘Ocupações colocam na pauta a prioridade da habitação’

Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Clara Miranda atua no ensino, pesquisa e extensão com foco em temas como habitação social, desenvolvimento urbano e a relação do urbanismo com a política, cidadania e movimentos sociais.

Ela é uma das participantes da plataforma BR Cidades no Espírito Santo, na busca de unir academia e movimentos sociais para avançar em pautas que permitam um novo ciclo de democratização das cidades. “A importância da plataforma está na constante análise de conjuntura com a simultânea revisão de diagnósticos e das soluções, dos meios e dos instrumentos para atuação no espaço urbano/regional. Estamos criando soluções urbanas coletivas em tempo real. Compreendendo a conjuntura desfavorável, o papel é manter viva a pauta da reforma urbana, do direito à cidade e dos direitos sociais”, diz sobre a plataforma presente em 15 estados do país.

Poderia fazer um breve histórico das políticas de habitação no Brasil, destacando as principais ações neste sentido?

O Brasil teve programas habitacionais de alcance nacional desde 1937 (IAPIs), mas de abrangência limitada, ou seja, não atendiam a toda população, sobretudo, a de baixa renda, sem carteira assinada, os trabalhadores informais pobres. O Chile teve uma em 1908 e o Uruguai tem uma desde 1968. 

Com a designação de política habitacional temos a Política Nacional de Habitação, Lei 11.124/05 que estruturou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, com a intenção de universalizar o acesso à moradia digna para todo cidadão brasileiro. O Brasil também tem um Plano Nacional de Habitação (PlanHab) que é um dos mais importantes instrumentos para a implementação da Política Nacional de Habitação.

Embora pouco praticado, o principal objetivo deste plano é formular uma estratégia de longo prazo para equacionar as necessidades habitacionais do país, direcionando da melhor maneira possível, os recursos existentes e a serem mobilizados; e apresentar uma estratégia nos quatro eixos estruturadores da política habitacional: modelo de financiamento e subsídio; política urbana e fundiária; arranjos institucionais; e cadeia produtiva da construção civil. 

Deste, o que mais teve atuação foram os dois primeiros; a ZEIS, zonas especiais de interesse social, que é um instrumento que consta do Estatuto da Cidade e dos planos diretores municipais. Visa a regularização fundiária dos territórios autoconstruídos, promovendo terra urbanizada e serviços públicos a essas zonas. Também houve duas leis para regularização fundiária, que foram promulgadas em 2015 e em 2017, esta é atual e ignora instrumentos do Estatuto da Cidade, visa mais colocar o patrimônio da União à venda e referendar a terra e a casa mercadoria, a propriedade privada. 

O Minha Casa, Minha Vida pode ser entendido como uma forma de implementação do eixo do financiamento do Plan-Hab. Os arquitetos, urbanistas, cientistas sociais criticam bastante o Minha Casa, Minha Vida por várias razões: dá excessivo protagonismo ao capital da construção civil; é uma reedição dos erros do BNH, como o espraiamento urbano para áreas que ainda necessitam de investimento público, alimentando a especulação imobiliária, causando deseconomias socioambientais; ainda, por se centrar na casa mercadoria em detrimento dos processos participativos preconizados pela Constituição e no Estatuto da Cidade, dentro outros

Pesquisas do Instituto Jones dos Santos Neves apontaram em 2017 um déficit habitacional de cerca de 75 mil famílias no Espírito Santo. Como avalia a atuação das autoridades capixabas para reverter essa situação?

As autoridades fazem muito pouco ou fazem corpo mole. O que constatamos é a ostentação de gestões da austeridade, o alarde de cortes dos “custos”, sobretudo nas gestões identificadas com o discurso neoliberal e de cidade empreendedora, mas que de empreendedorismo nada têm. Seus discursos fazem a equiparação da gestão pública à gestão privada, atuam como se fossem corporações, que significa exatamente um grupo fechado associado para fins privados. A postura da austeridade se traduz em menos serviços para os cidadãos e menos investimento na cidade, mormente, em moradias populares.

Muitas das políticas de habitação social já realizadas no país sofrem críticas que vão desde o formato arquitetônico, qualidade dos materiais, localização, falta de espaços e serviços públicos e outros. Que fatores considera importantes para se ter habitação social de qualidade?

Aquela que equalize uma relação ótima de distâncias entre trabalho, local de moradia, dispondo de terra urbanizada, transporte, equipamentos e serviços públicos que incluam saúde, educação, lazer, cultura, que respeite as áreas de proteção ambiental, realizada de forma participativa e democrática.

Especialmente no Centro de Vitória houve nos últimos anos a ocupação de edifícios vazios por famílias e movimentos sociais que lutam pelo direito à moradia. Qual a importância desses movimentos e qual o impacto que eles têm?

A importância está em chamar a atenção para a situação de crise da moradia, a situação de déficit: que inclui precariedade da moradia, o ônus excessivo com o aluguel, a coabitação de várias famílias em imóveis pequenos, a pobreza, sobretudo a pobreza. Há famílias no estado vivendo com 30 reais per capita.Conforme estudo do IJSN, muitas famílias vivem com renda menor do que 500 reais mensais. São famílias vulneráveis em situação de desproteção socioeconômica e civil, por exemplo, cerca de um terço da população de Vitória vive em situação de vulnerabilidade social, a capital que tanto se orgulha dos seus índices de desenvolvimento humano. 

O comprometimento da renda com habitação é impraticável para a população vulnerável. Isso requer políticas públicas, porque a habitação é prerrogativa para acessar os outros direitos sociais; a falta ou a precariedade da habitação aprofunda a pobreza!

Acho que as ocupações colocam na pauta a prioridade da questão da habitação, mas as chamadas autoridades, com algumas exceções, têm conseguido desviar-se, ou pior, fugir do debate.

Foto: Facebook

– Um dos temas que está em pauta na Câmara Municipal de Vitória é a implementação do IPTU Progressivo, já previsto no Estatuto das Cidades e no Plano Diretor Urbano do município. Qual a importância de implantá-lo na cidade? Que outras ações e instrumentos podem favorecer as políticas para combater a especulação imobiliária e favorecer o uso social das propriedades?

O plano diretor municipal já conta desde 2005 com diversos instrumentos de política urbana para concretizar o direito à cidade e colocar em prática a função social da propriedade. A lei do PDU, de 2017, estabelece sobre o “parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, nos termos do artigo 182 da Constituição Federal e dos artigos 5º e 6º da Lei Federal no 10.257/01, os imóveis edificados ou não, subutilizados e não utilizados conforme definidos nesta Lei.” Ali está circunscrita a área principal de aplicação da lei (o centro de Vitória), as formas de notificação do proprietário que tem o imóvel subutilizado ou não utilizado, o que se quer dizer com esses termos, tudo bem explicado. Entretanto, faltava designar a multa do IPTU progressivo, é o que essa PL faz. Além de indicar que o recurso arrecadado vá para o fundo municipal de habitação.

O vereador Roberto Martins (PTB) colocou outras propostas para integrarem a lei orgânica do município, numa audiência realizada no dia 16 de setembro. Instrumentos como uma política habitacional para habitação de interesse social, a formação de um estoque habitacional para realização dessas políticas, com a devida apreensão de imóveis que têm dívidas maiores do que o valor do imóvel.

Na sessão que iria votar a proposta, a maioria dos vereadores se disseram pouco informados para deliberarem sobre o assunto. Aliás, nem foram nessa audiência, que coloca esses instrumentos mais polêmicos ainda para os proprietários descumpridores da função social da propriedade, que é a apreensão ou perda de imóveis endividados com o município.

Alguns desses vereadores, que demonstraram desconhecer os instrumentos, estão na câmara há três mandatos, o que quer dizer que participaram da discussão das duas últimas revisões 2005 e 2017, de modo que aprovaram o texto da política urbana que ali consta. Nessas duas versões de PDUs de Vitória, há os tais instrumentos do PL e muito mais para fazer uma política habitacional bacana.

A função social da propriedade é uma peça-chave do direito urbanístico, foi divulgada por duas tendências distintas desde o início do Século XX: a doutrina social da igreja, que condena a propriedade ociosa e a avareza; e o positivismo, que em suma pensa a cidade como um organismo produtivo e não aceita que partes dela estejam fora de funcionamento, causando prejuízos socioambientais. As duas doutrinas rejeitam a ociosidade e preconizam o uso produtivo das propriedades. Ou seja, a função social da propriedade é um instrumento de abrangência internacional e está na Constituição Federal no art. 5, no capítulo da política urbana e no capítulo da ordem econômica e noutros mais.

Que bons exemplos podemos citar aqui no Espírito Santo que envolvam planejamento comunitário e políticas de habitação e convivência?

O projeto Terra e o planejamento comunitário feito no Território do Bem, que eu me lembre agora.

Que tipo de experiências de outros estados e países acredita que podem servir de inspiração para pensarmos a questão da moradia no Espírito Santo?

O Uruguai tem política habitacional desde 1968, com ela articula a produção em cooperativas e por meio de assessorias técnicas. O governo oferece crédito de 85% do valor do terreno, exige que seja adquirido em área urbanizada. As cooperativas atuam de forma autogestionária, enfim, isso é que é participação e democracia efetiva! Ainda, atuam por meio de autoajuda e praticam a propriedade coletiva. A qualidade da habitação é excelente e a satisfação dos usuários é certa. Lá os imóveis que devem mais do que o seu valor venal, são tomados dos seus proprietários e colocados no estoque dos programas de habitação social.

 

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