Carlos Agne, Josias Siqueira e Ataíde Mateus comandam cerca de 60 veículos e movimentam pelo menos R$ 250 a R$ 300 mil por mês e, ainda, de forma alheia a mecanismos de fiscalização tributária. À sombra da omissão do poder público, montaram frotas particulares impressionantes, azeitadas por diárias exorbitantes arrancadas do trabalho de defensores. São lendas vivas entre os taxistas de Vitória, em quem inspiram sentimentos que vão do respeito ao asco.
Tal é o que a reportagem de Século Diário levantou em pouco mais de um mês percorrendo cerca de 30 pontos de táxi em Vitória para traçar um painel do serviço na cidade e descobrir, entre defensores e permissionários, quem efetivamente labuta atrás do volante dos táxis. O serviço de táxi em Vitória é executado em 90% por defensores. A frota de Carlos, Josias e Ataíde é sustentada precisamente por essa lógica que poupa permissionários e sacrifica defensores.
Para entender a talento para a fraude de Carlos, Josias e Ataíde é preciso, antes, investigar o regime de operação do mercado de táxi fora das fronteiras da lei. Aqui, especificamente, interessa a concentração de placas nas mãos de um grupo restrito, anomalia consagrada por três modalidades: dolo licitatório via utilização de laranjas, compra de concessão ou sublocação. Uma placa em Vitória, hoje, custa R$ 300 mil em média; o aluguel sai por R$ 2 mil em média.
Dono da maior frota particular de táxi de Vitória, Carlos Agne ampliou seu negócio sobretudo com compra de concessões. Os taxistas garantem que ele comanda algo entre 20 a 25 carros. Trabalha apenas com diária, cuja tarifa foi pespegada pela fama de mais cara da cidade: trabalhar em um veículo de sua lavra no Aeroporto de Vitória significa honrá-lo com R$ 300 por dia.
Sobre o regime de diária, vale um parêntesis para explicá-lo. “Diária é o cúmulo da exploração. Você já sai de casa devendo”, explica um taxista. Exemplo: se o defensor trabalha com uma de R$ 200, ele precisa fazer pelo menos R$ 250 para começar a trabalhar para si mesmo. Naqueles R$ 50 estão o combustível e alimentação.
Operando a matemática da diária média de Vitória – R$ 200 – multiplicada pelo número de carros em questão – 20 a 25 – chegamos ao produto: Carlos Agne deve movimentar mensalmente de R$ 120 mil a R$ 150 mil. É um mercenário, explorador, homem de alma gélida e mesquinha? Não exatamente. “Seu Carlinhos Agne”, como é conhecido nas ruas, é antes de tudo um hábil e, até certo ponto, caricato homem de negócios.
O maior defeito de Carlinhos é sua maior virtude. É unha de fome, pão duro, mão de vaca. “Se você o vê na rua você não acredita”, diz um defensor Carlinhos, descrevendo um senhor com mais ou menos 55 anos que se veste com uma simplicidade absolutamente destoante de seus ganhos. É possível flagrá-lo na rua enfiado numa calça de tergal e camisa de botão como um homem simples do interior. Mas só anda de Hilux.
“Seu Carlinhos” teria começado o negócio há 15 anos. A frota inicial de três veículos foi expandida comprando placas – lembrando que a primeira licitação realizada nos últimos 20 anos foi a de 2008. No início, e durante um bom tempo, ou seja, mesmo após ter se alcançado a distinção de “barão do táxi”, recolhia as diárias ponto a ponto numa singela CG 125.
Uma brincadeira que corre sobre seu Carlinhos talvez seja a melhor definição de seu perfil: seu café da manhã é pão seco. Verdade ou mentira, não importa, mas é uma excelente imagem do perfil de Agne: fez dinheiro, amealhou patrimônio seguindo rigorosamente o princípio da usura. Ascetismo financeiro para engordar a burra.
Não é por hábito arraigado que ainda mora em Santa Rita, uma casa em frangalhos em um dos bairros mais violento de Vila Velha que, assim como o vestuário do patrão, se ressente de traços de nobreza. Hoje é para lá que segue todas as manhãs cada um de seus defensores para pagar as diárias. O recolhimento, antes, ocorria também pelas manhãs no estacionamento do Bob’s da Praça dos Namorados, em Vitória. Parecia um drive thru: um carro atrás do outro para honrar os negócios do patrão.
Em Santa Rita, em um galpão contíguo à própria casa, Carlinhos ergueu o grande exemplo de sua maior virtude: uma oficina de carros. O mecânico é o próprio filho – e bom mecânico, dizem os taxistas. Exemplo impressionante de avareza para evitar custos e majorar lucros. Tanto que a frota de Carlinhos é tida como irreparável: Colbats reluzentes, de pneus sempre novos, motores tinindo, troca de óleo na hora certa.
“Ele não troca peças porque estraga, mas por tempo de uso”, diz um taxista. A oficina conta com pneus novos, cheios e balanceados, prontos para uso. Carlinhos só tira dinheiro do bolso com manutenção mecânica para fazer alinhamento. “Parece Fórmula 1: você pára com o carro, vem o cara com a pistola, tira os parafusos do pneu e bota um novo”, diz um defensor.
Um taxista contou que, certo dia, a caixa de marcha do carro quebrou. Sem problemas. Bastou levar o carro à oficina de Santa Rita: na manhã do dia seguinte o carro rodava como novo. Com o mesmo final, outro taxista contou história semelhante sobre a embreagem.
Carlinhos suscita respeito e até admiração entre os defensores. É visto como bom patrão, que na medida do possível arruma um bom ponto para o defensor. É tranquilo no trato. Ajuda os funcionários em momentos delicados – casos de doenças, problemas familiares. Mas, criticam muitos taxistas, cobra a diária mais cara de Vitória, para a qual há sempre alguém desesperado por emprego. “É um mercenário”, fustiga outro.
Afora o negócio do táxi, Carlinhos montou com os filhos uma cooperativa, cujo objetivo é ocultar sua ampla frota sob o conceito de gestão coletiva associado às cooperativas. É fácil identificar esses veículos: sobre a plotagem do táxi, estão todos adesivados com o nome da empresa, a Coopataxi-ES (Cooperativa de Transportes de Passageiros e Cargas e Locação de Máquinas e Veículos). Mas a gestão ali não é coletivo. Pertence a um único dono: Carlos Agne.
Além do negócio de táxi, a Coopataxi-ES presta serviços para a prefeituras de todos o Espírito Santo e para o governo do Estado, como Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan) e a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus). Em 2016, a Prefeitura de Vitória já empenhou R$ 242 mil à cooperativa, segundo dados do portal da transparência do município.
Nasce um mistério: como um homem que lidava estritamente com serviço de táxi salta das ruas para as entranhas do poder público? Quem ergueu essa ponte entre a empresa de seu Carlinhos e as licitações do Estado e das prefeituras? Por que Carlinhos, e só ele, montou uma cooperativa? São dúvidas, no mínimo, procedentes.
De forma geral, Josias e Ataíde inspiram sentimentos menos nobres. “São duas cobras-criadas. Têm 15 a 20 carros cada um”, esbraveja um taxista com décadas de praça. Josias é apontado como explorador de pelo menos 18 placas em diferentes pontos de Vitória – Praça de Jucutuquara, Aeroporto, Carone de Santa Lúcia, e Rodoviária, estão entre os apontados. Ataíde, idem.
“Mercenário” foi a qualificação que mais ouvimos em referência a ambos. Trabalham com uma gestão draconiana de diárias: não pagou, está fora, sumariamente. “Mercenário” foi a qualificação que mais ouvimos em referência a ambos. Trabalham com uma gestão draconiana de diárias: não pagou, está fora, sumariamente. Mas se são mercenários, não são desleais; jogam limpo com o candidato a defensor: contanto que a diária seja honrada, ele pode pegar o carro e ir até a Bahia. ; jogam limpo com o candidato a defensor: contanto que a diária seja honrada, ele pode pegar o carro e ir até a Bahia.
Josias, especificamente, é descrito como homem de palavra. “Vou falar mal do Josias? Não vou. Tive patrões muito piores que ele. Ele é duro, mas cumpre o que diz”, diz um defensor. “Ele é honesto: diz que você não é obrigado a aceitar o trabalho”, aponta outro. Porém, mercenário, homem de negócios de espírito frio. “Ele não quer nem saber se sua mulher está doente. Nada. Quer o dinheiro dele”, diz mais um. “Não fez a diária? Põe outro no lugar, não tem perdão”, fala mais um. “Ele exige o seguinte: tá trabalhando no meu carro? Me dá o dinheiro. Acabou”.
Ataíde mora na Serra. Seis horas da manhã sai em peregrinação pelo Aeroporto, no posto Arara Azul e na Rodoviária, entre outros pontos, para recolher as diárias. É também apontado como patrão tranqüilo, que até indica se o ponto é bom ou não. O defensor só não deve cometer o equívoco de aparecer com um valor abaixo da diária. O ponto de recolhimento de Josias é a Rodoviária. A partir das 5h, encaixa seu carro em alguma vaga do estacionamento e fica à espera das prestações
Os dois se iniciaram no mercado de táxi há 35 anos praticamente juntos na Vila Rubim como defensores. Josias era doqueiro no Porto de Vitória. Montaram suas frotas operando com a sublocação de placas, prática comum, embora vedada por lei. Parece um mecanismo que põe o locatário ao largo de constrangimentos que poderia ter com a utilização de laranjas para vencer licitações.
O esquema de aluguel de Josias e Ataíde gera pelo menos R$ 50 mil por mês para cada um, considerando os elementos que levantamos. Se em Vitória o valor médio de aluguel é de R$ 2 mil, com dois defensores pagando uma diária média de R$ 200 por placa, uma matemática simples revela um lucro bruto mensal de R$ 6 mil, que, descontados a tarifa de aluguel e o custo de manutenção do veículo, desemboca em um lucro líquido médio mensal de R$ 3 mil por placa.
Como aqui temos uma média de 18 placas para cada um: R$ 55 mil mensais.
Na quarta reportagem da série, nesta sexta-feira (11), aborda os indícios de que Secretaria Municipal de Transportes, Trânsito e Infraestrutura Urbana (Setran) age para proteger o mercado de táxi da capital, ou seja, proteger a renda fácil dos permissionários da capital capixaba. Há também os pontos que causam estranheza na recente licitação que concedeu 108 novas placas de táxi, como a vencedora que se habilitou em quatro línguas em três meses.