Moradores da região periférica enfrentam problemas antigos de abastecimento, agravados em 2020
Moradores do Território do Bem, que contempla nove bairros da região periférica de Vitória, sofrem com a falta de abastecimento adequado de água. Os problemas se intensificaram no final de 2020, mas fazem parte da história de gerações inteiras, obrigadas a viver sem a prestação desse serviço básico e essencial.
O problema atinge diversas partes do Território do Bem. Há relatos de falta de água em comunidades como a de São Benedito, Bairro da Penha e Bairro Floresta. Nesses locais, a água chega em dias alternados, sempre no final da noite.
“É uma falta de respeito muito grande com a periferia. Nessa pandemia então, quando a água tinha que ser liberada para gente se cuidar, cuidar das nossas crianças, higienizar a nossa casa…só que não chega!”, declara a vendedora Jane Araújo, moradora de São Benedito.
Na casa da Jane, o problema de abastecimento começou no ano passado, após a Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan) fazer alterações na rede. Segundo ela, o objetivo era resolver problemas no abastecimento de alguns moradores, mas acabou atingindo bairros que antes eram atendidos normalmente.
Nessa sexta-feira (18), quando conversamos com Jane, era “dia de cair água”, como ela define. “Só que quando ela chega é 23h, meia-noite. Assim, tem dia que a gente não aguenta esperar, né? Acaba dormindo, acumulando mais sujeira, mais roupa para lavar, mais vasilha para lavar, mais coisa para fazer”, relata.
A falta de abastecimento alterou também a rotina e os costumes das famílias do Território do Bem. Quando a água chega, quase de madrugada, é hora de fazer o que não pôde ser feito durante o dia. “Nos becos, você vê as famílias com os tanquinhos para fora, para lavar roupa e vasilha. Quem mora mais no alto, a caixa d’água não enche ou enche só um pouco. Então, a galera vai descendo, vai juntando nos becos para conseguir manter um pouco limpas as coisas”, descreve.
Ela prossegue: “É muito triste. Às vezes, seu filho quer tomar um banho fora de hora, em um dia que está muito calor. Como que toma esse banho? Não tem água. A gente tem que se unir muito aqui. Às vezes, até minha água de beber acaba, temos que pedir ao vizinho. Quando a gente consegue um dinheiro, compra um galão de água, mas tem pessoas que não têm condições de comprar”, conta.
Foi essa rotina que Fátima Reginaldo de Oliveira, de 43 anos, aprendeu quando ainda era criança. Ela mora no Bairro da Penha desde que nasceu e conta que a falta de água na região periférica é um problema que a mãe dela já lidava. “A gente já está acostumado. Minha mãe dizia: minha filha, só cai água de madrugada”, conta.
Apesar de ter ouvido os mesmos relatos da mãe, Fátima diz que não está disposta a aceitar a mesma condição. Ela faz parte do grupo de moradores que se uniu para reivindicar o direito de acesso ao abastecimento adequado.
O grupo realiza reuniões virtuais, buscando ajuda de órgãos como a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES). “A minha geração que está correndo atrás, denunciando coisas que a geração do meu pai e da minha mãe já tinha que passar. Nós agora entendemos que temos direitos”, ressalta.
Para o morador do Território e ativista, Valmir Rodrigues Dantas, a solução do problema de anos é a construção dos reservatórios de São Benedito, iniciada pela Prefeitura de Vitória. “O problema já é antigo. Eles ficam fazendo paliativo. Resolve, depois volta o problema de novo. É uma coisa que já vem se arrastando há muito tempo”, ressalta.
Tanto Fátima quanto Jane sentem o reflexo da desigualdade na capital capixaba. “Meu esposo trabalha na Praia do Canto e ele fala que lá tem água direto. Lá não falta água. Por que só falta água na periferia?”, questiona Fátima.
Jane reitera. “Quando você olha na televisão, está lá ‘nossa, a cidade de Vitória é uma cidade maravilhosa’, mas ninguém olha para a periferia. O povo da periferia pede socorro em todos os sentidos”, reforça.
Ofício
Em abril, a Defensoria Pública enviou um ofício à Cesan, à Prefeitura de Vitória e à Secretaria de Desenvolvimento da Cidade e Habitação solicitando informações sobre os problemas de abastecimento no Território do Bem. Na ocasião, mais de 20 famílias relataram dificuldades de acesso à água.
O órgão também disponibilizou um formulário online para que os moradores pudessem relatar os problemas. O objetivo é facilitar a coleta de informações sobre o assunto. “Essa situação é ainda mais crítica no contexto de pandemia do novo coronavírus, uma vez que a prevenção à contaminação pelo vírus exige a higienização adequada”, declarou a DPES em ofício.
Por meio do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam), a Defensoria questionou à Cesan as providências adotadas para normalizar a prestação do serviço. “Foi apontado que, desde o final do ano passado, o acesso à água tem sido cada vez mais escasso, sendo fornecido em intervalos de dias maiores e ficando longos intervalos de dias sem abastecimento. Alguns moradores relataram que há duas semanas não tiveram nenhum acesso à água”, aponta o documento.
Os moradores dizem que a Cesan justifica a falta de água com a incapacidade de bombeamento de água para as partes mais altas dos bairros. “Em relação a esse problema de bombeamento, os moradores esclareceram que, há cerca de oito anos, o município de Vitória, no escopo do Projeto Terra, elaborou um projeto para a implementação de um sistema de abastecimento de água nos bairros do Território do Bem, captou recursos para a implementação, gastou uma grande quantidade de dinheiro para a construção de caixas d’água em Jaburu e outros bairros, porém até hoje não conclui as obras. A este respeito, eles reclamam da falta de diálogo e de transparência do município de Vitória com a comunidade”, informa a DPES.
O ofício ressalta que o acesso à água é essencial para a garantia da dignidade da pessoa humana e dos direitos à vida, à saúde, e à moradia. “É dever do poder público, bem como das suas concessionárias, oferecer o serviço de saneamento básico de modo contínuo e regular a todos os cidadãos”, ressaltam.