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Parecia um mendigo, mas era um jornalista

“É o retrato autêntico de um mendigo”. As palavras com que jornalista Rogério Medeiros abre a reportagem sobre seu colega de profissão não parecem muito animadoras. Mas o próprio título do texto é explicativo: “O sucesso vestido de fracasso”. Apesar das aparências e preconceitos dos olhos alheios, João Evangelista Bicalho Cúrcio era um comunicador de sucesso. Editava um dos mais antigos jornais em atividade no Espírito Santo.

Personagem daqueles que revelam a inteligência, persistência e simplicidade do Brasil profundo, João faleceu no dia 9 de novembro, aos 73 anos, no município de Muqui, que decretou luto oficial de três dias pela perda de seu cidadão que foi reconhecido para além de suas fronteiras.

Vale a pena reler a crônica publicada há tantos anos por Rogério Medeiros, revelando detalhes deste personagem único do jornalismo capixaba.

O sucesso vestido de fracasso

Rogério Medeiros

Ele contraria todas as regras de aparência desejadas para um bom comunicador: baixinho, feio, desengonçado, fala com enorme dificuldade, por causa de sequelas ainda do parto, veste-se mal, camiseta surrada, só usa sandálias e dificilmente põe uma calça, sempre dentro de velhas bermudas. Nada é novo nele, nem mesmo a idade. Aos 55 anos, aparenta mais, principalmente pela falta dos dentes. É o retrato autêntico de um mendigo.

Pois bem, mesmo com esse formato ele é um comunicador. E comunicador de sucesso: há 28 anos edita um jornal em Muqui, no sul do Estado, que só não é o mais antigo periódico do interior do Espírito Santo por causa do jornal “Ordem”, de São José do Calçado. O Ordem já fez 60 anos de existência, trinta e dois a mais que o seu, que se chama “Jornal de Muqui”. Mas o dele é o segundo mais antigo do Estado.

Importante: esse fenômeno de comunicação se passa na cidade de Muqui, onde se localizou uma das aristocracias rurais mais sofisticadas do Estado – cento e tantos antigos palacetes dão ainda hoje a noção do que foi o período de seu fausto. Alguns até mantêm descendentes de antigas famílias que viveram esse período áureo do lugar. “No inicio não foi fácil para a cidade conviver com ele, sofreu chacotas e deboches. Mas, com o tempo, se fez respeitar, apesar dos trajes e do tipo”, revela Luci Capai, muquinhense de quatro costados.

Outro aspecto a considerar no êxito do “Jornal de Muqui”: ele nasceu de uma dissidência do jornal “O Município”, que era editado no lugar pelo ex-deputado e ex-senador Dirceu Cardoso. João Evangelista Bicalho Cúrcio – o nome do nosso personagem desta reportagem – trabalhou antes nele. É de se imaginar os dois juntos: Doutor Dirceu (como sempre foi tratado em Muqui), que nunca foi à rua sem estar bem trajado e sempre de terno, ao lado de um colega de trabalho maltrapilho. Um espetáculo surrealista, digno de um Salvador Dali, ironiza um intelectual do lugar que preferiu, no entanto, não assumir a expressão publicamente, com receio de se passar por conservador perante o pessoal de sua terra.

Antes de tornar-se companheiro do dr. Dirceu no seu jornal, João foi também seu aluno no colégio de Muqui. E, como continua ocorrendo ainda hoje em qualquer periódico do interior, na qualidade de voluntário. Ele iniciou-se na profissão fazendo uma coluna sobre o vizinho município de Castelo. Depois passou a escrever sobre esportes. Conviveram alguns anos juntos. Opinião dele sobre o ex-chefe: “O dr. Dirceu é uma pessoa muito boa, mas muito exigente, dava muita bronca. Saí em 77 para fazer o meu jornal. No inicio foi muito difícil, quase impossível, hoje continua sendo ainda muito difícil, mas não é mais impossível”.

Nessa ocasião ele sofreu uma enorme discriminação por parte da elite de Muqui, que se sentia lesada com João, usando o nome do município no jornal. Houve um boicote. Não liam o seu jornal. A população sentia-se contemplada com o jornal do dr. Dirceu. Se era difícil quem o lesse, conseguir publicidade foi impossível por essa época. Foi buscar em outros municípios. A situação só se reverteu depois que o dr. Dirceu fechou o seu jornal (nos anos 80). A partir daí o muquiense foi obrigado, por falta de outra alternativa, a adotar o seu jornal.A princípio o seu jornal concorreu com o do dr. Dirceu. Foi o período mais difícil. O jornal do senador não era só lido em Muqui, mas em todo o Estado, por causa do prestígio do senador e dos ataques desfechados sobre os adversários. Imaginem João, nos seus trajes habituais e com as dificuldades naturais de se comunicar, concorrendo com uma figura bem trajada e notável da política capixaba. Foi, sem dúvida alguma, revela o próprio João, o seu momento existencial mais difícil. Esteve perto de sucumbir.

E o jornal cresceu. Hoje ele é lido também em cidades vizinhas, como Mimoso do Sul e Castelo. João faz tudo no jornal: escreve, pagina, despacha para assinantes pelo Correio, faz entrega aos leitores em Muqui, pedalando uma velha bicicleta, com os exemplares dentro de uma caixa no bagageiro, com letreiros de propaganda do jornal nas laterais.

A redação do jornal fica nos fundos de sua casa, num pequeno cômodo dotado de poucas peças, dois armários, uma mesa de escritório e outra com sua máquina de escrever preferida – uma velha Facit, ainda dos anos 50. Uma cama simples para eventuais descansos mas que acabou tornando-se definitiva. Faz também a fotografia do jornal, usando uma simples câmera fotográfica automática. De fora, apenas um revisor. Por causa das suas dificuldades com as letras, costuma trocá-las por força das lesões na sua capacidade motora.

Orgulho de João: ter recebido títulos de cidadania em Mimoso, Castelo e Cachoeiro de Itapemirim, além de homenagens especiais na Câmara de Muqui. Mas, apesar das comendas, ele não é unanimidade na sua terra. Segundo sua irmã de criação Creuza, uma viúva, de 46 anos, que faz hoje a vez de mãe, há ainda muita resistência a João em Muqui. Para ela, há os que acham ele importante para o lugar, os que continuam tendo a visão dele de um mendigo e ainda uma terceira corrente que não o agüenta quando quer uma coisa, que o tem como um chato, na verdadeira acepção do termo.

Ele é filho único de um casal tradicional de Muqui. O pai foi comerciante e a mãe, quando ficou viúva, dona de pensão. João tem problemas de saúde, todos eles decorrentes do parto. Foi extraído a fórceps (na época do seu nascimento não havia quem fizesse cesariana em Muqui). João foi criado pela mãe como um inválido, tendo, inclusive, adotado Creuza para sucedê-la na criação do filho.

Creuza e João conseguem viver bem sob um mesmo teto, embora a irmã não aprecie o desleixo do irmão. Volta e meia tem que enquadrá-lo, principalmente quando ele sai para ir a uma festa. Chega a entrar em desespero quando o irmão parte para Vitória, para visitar o governador e o presidente da Assembleia. Nessa hora o irmão é obrigado a fazer algumas concessões. Trocar, por exemplo, a surrada bermuda por uma calça. A sandália de dedo por uma trançada de couro. “Pelos menos isso, nunca consegui: que ele aceitasse vestir uma camisa social”.

Mas é desse jeito mesmo que ele é recebido há anos por governadores e parlamentares. Começou a freqüentar o palácio Anchieta ainda no tempo do governador Eurico Rezende. Todos os governadores os receberam, independentemente do traje. O governador José Ignácio, então, é seu velho conhecido, pois foi diretor do Colégio de Muqui, quando o educandário fundado por Dirceu Cardoso foi estadualizado. Mas João não vem só a Vitória, vive também, segundo ainda a irmã, pendurado num ônibus andando pelo sul do Estado, divulgando o seu jornal e recolhendo notícias.

Ele não gosta que levem notícia para ele, prefere ir atrás dela, assim como prefere ele próprio fazer as suas fotografias. Como escreve o jornal inteiro, é ele também quem faz a coluna social. “Ele comparece às festas do jeito que anda, eu morro de vergonha, mas não adianta brigar com ele por causa de roupa, pois João é um batalhador e é ele quem sustenta a nossa casa (que trocaram por uma pequena propriedade rural herdada dos pais).

Mas João é um despojado quando se trata de bens materiais. Segundo também a irmã, ele herdou um apartamento de uma tia solteirona no Rio de Janeiro e nunca se interessou em ir regularizá-lo, da mesma forma como recusou, como herdeiro universal, a pensão da tia, alta funcionária da Receita Federal.

Para um tipo desleixado, mas especial, pois bem sucedido profissionalmente, uma indagação que perseguiu o repórter desde que entrou em sua intimidade: e o amor, João? Sorriso de surpresa, e intervenção da irmã: “Não tem. Do jeito que ele anda quem vai se interessar?” A clássica desculpa na intervenção de João: “Casei com o jornal. É a ele que dedico o meu amor”, alegou. Mas João tem o rosto de quem aprisionou o desejo. Difícil acreditar que, da mesma maneira com que reverteu uma situação de incapacidade física e ganhou espaço no jornalismo do interior, João também tem alguém no coração. Mas não deixou o repórter, como ninguém até hoje, segundo a própria irmã, fazer qualquer leitura do seu coração.

Assim como Biron, personagem de Shakespeare, na peça Trabalho de amor perdido, João busca a própria imagem nos olhos das mulheres.

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