Parecia uma reunião de pais e professores do Colégio Darwin. Na consulta pública realizada nessa terça-feira (8) em Vila Velha para debater o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) de uma unidade do Darwin na região do Morro do Moreno, o representante da instituição, Fabrício Henrique Santos Silva, passou mais de trinta minutos apresentando o projeto. Só omitiu um ponto: a construção do Darwin no local planejado é uma ilegalidade.
Ele defendeu as benesses projeto, se abriu para sugestões mitigatórias, falou em transparência. “Sempre pedimos licença para entrar na cidade do outro”, afirmou. Mas dizer que a área para a qual a unidade foi planejada é uma Zona Especial de Interesse Ambiental (ZEIA), qualidade que, portanto, proíbe edificações, ele não disse. Para usar um termo da moda, foi uma “pedalada regimental”. Submeteu o sucesso da empreitada não aos trâmites legais, mas aos aplausos da plateia.
Cerca de 250 pessoas compareceram. O auditório do Hotel Quality, na Praia da Costa, ficou lotado; havia gente em pé na porta de entrada. Além de moradores, havia ainda professores do colégio nas cadeiras.
A consulta pública começou com uma, digamos, peraltice, expediente sutil de que os autores do projeto lançaram mão para seduzir a comunidade. À entrada, panfletos com marca d'água da Associação dos Moradores de Jardim da Penha (Amjap) eram distribuídos aos presentes. Nele, a histórica entidade, de sólida tradição de defesa dos interesses dos moradores de Jardim da Penha, reconhecia benefícios à comunidade da unidade do bairro do Darwin. Havia ali as palavras respeito e cooperação. O texto era subscrito pelo atual coordenador-geral da Amjap, Fabrício Pancotto.
Mas dessa vez a Amjap não guarneceu Jardim da Penha. Pior: meteu o bedelho no que não conhece. Resultado: Pancotto quis fazer política de boa vizinhança, mas, de fato, asseverou uma ilegalidade.
O colégio está previsto para localização no encontro das ruas Joaquim da Mota e Espírito Santo. Com autorização do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf), já foi realizada a limpeza do terreno. O projeto consultado foi apresentado à Prefeitura de Vila Velha em 2011. Compõem-se de três pavimentos, com 38 salas, 40 vagas de estacionamento para veículos e 45 para bicicletas. A área total é de seis mil metros quadrados. A instituição também planeja uma rua projetada e um prosseguimento da Rua Diógenes Malacarne.
Segundo Fabrício, cerca de 134 alunos moram na Praia da Costa e estudam na unidade de Jardim da Penha; outros 274 são do bairro e estudam no Leonardo da Vinci (instituição parceira), também em Vitória; e de mil alunos da unidade de Divino Espírito Santo, em Vila Velha, 415 moram na Praia da Costa.
Fabrício justificou o projeto com um conceito: a instituição almeja fazer daquela unidade uma “escola de bairro”, ou seja, um produto voltado para a comunidade local e entorno, evitando engrossar as já esgotadas vias de acesso e saída à região com mais fluxo. Tais vias são as avenidas Antônio Gil Veloso e Hugo Musso e a Rua Desembargador Augusto Botelho.
Apesar das boas intenções da instituição, a conclusão de impacto viário do EIV é temerosa: simplesmente não vislumbra impactos significativos no sistema viário do entorno. A tese foi rebatida durante o debate, já que é de difícil sustentação em uma região com apenas três artérias de entrada e saída. Fabrício ainda sugeriu aos presentes que oferecessem sugestões em mobilidade para mitigar os impactos. E para minimizar o fato de que a unidade está em uma Zeia, Fabrício se escorou em uma antropização do local.
Por fim, enumerou os pontos positivos e negativos do projeto. Entre os positivos, se valeu do discurso da insegurança, tema sensível aos moradores da Praia da Costa. Segundo ele, é fato indiscutível de que um colégio no local iria conferir mais sensação de segurança aos moradores do entorno, que efetivamente sofrem com assaltos e roubos. Mas a Universidade de Vila Velha (UVV), em Boa Vista, e a Faculdade Novo Milênio, em Coqueiral de Itaparica, se valeram do mesmo discurso para serem implantadas. E histórias de insegurança ainda rondam ambas.
“Não queremos atropelar nada. Só queremos saber quais são os parâmetros para fazer a obra”, finalizou Fabrício. Por inúmeras vezes, disse em tom lamentoso que lá se vão 10 anos tentando fazer a obra, mas esbarrando em instrumentos jurídicos.
O microfone foi aberto para o debate com os moradores. O presidente da Associação de Moradores da Praia da Costa (AMPC), Sebastião de Paula, fez a primeira manifestação. Numa pergunta simples e direta, expôs a omissão do representante do Darwin: “Em que lei o projeto se baseia?”. Questão necessária: se temos ali uma Zeia, como fundamentar juridicamente uma tal proposta?
Fabrício não respondeu. Foi pronta e oportunamente socorrido pela secretária municipal de Desenvolvimento Urbano, Ana Márcia Erler, que criou um sinônimo para ilegalidade: pacto. “Vencer essa questão da legalidade é uma questão importante. Mas também tenho que respeitar 10 anos de história. Antes de fechar essa legalidade, vamos aqui ouvir vocês. A proposta é fazer um pacto”.
De outra forma, mas pelo mesmo caminho, a secretária também usou o termo alinhamento, ou seja, um acordo entre poder público, sociedade civil e ente privado para suplantar um impedimento legal em nome do interesse público. “Não existe lei que seja estanque para o resto da vida”, concluiu a secretária.
O microfone voltou para Sebastião, que enunciou outra controvérsia. A área em questão pode ser declarada uma Zpac-1 (Zona de Proteção do Ambiente Cultural), que permite edificações de dois pavimentos ou nove metros de altura. O projeto do Darwin registra três pavimentos.
A partir daí, o microfone chegou aos moradores e entendeu-se de fato por que a consulta parecia uma reunião de pais do Darwin. A adesão ao projeto foi ampla e, na maior parte das vezes, arrebatada. Cada palavra de apoio era seguida de aplausos febris. De modo geral, os moradores legitimaram a ideia de que uma unidade do Darwin no local vai significar mais segurança, mais valorização para a região e mais comodidade para levar os filhos à escola.
A história de uma moradora da região do Morro do Moreno comoveu. Relatou um caso de assalto quando chegava em casa de carro, tendo sido cercada por um grupo de adolescentes. Contou também um caso de assalto à sua casa. Foi um desabafo indignado contra a indiferença do poder público em prover a cidade de segurança. O depoimento resumiu o sentimento geral: o ente privado pode remendar as falhas e omissões do ente público. Daí o apoio quase irrestrito ao projeto.
Mais de uma vez, moradores desqualificaram a Zeia: “quem fez aquilo ali não tinha o que fazer”, ponderou um. Outros acham que a construção de uma escola é um projeto de interesse público, mesmo que executado por um ente privado com destino a um segmento restrito em condições de honrar os custos do ensino de excelência do Darwin.
Mas, embora a adesão tenha sido maior em quantidade, a minoria contrária ao projeto apresentou argumentos mais consistentes.
Um advogado, morador do entorno da região do morro, foi no alvo: “Estamos perdendo tempo tratando de uma matéria que está à margem da lei, tecnicamente falando”. disse. O advogado também perguntou à secretária se serão implantadas ciclofaixas, ante o anseio do Darwin de estimular o deslocamento de duas rodas. E, por fim, sublinhou a omissão pontual na apresentação de Fabrício de que o projeto está à margem da lei. Uma advogada refletiu: “Eu entendo que isso [o projeto] é mais interesse privado do que público. A região não pode ser alterada sem o interesse público”.
Irene Léia, do Fórum Popular em Defesa de Vila Velha (FPDVV) e representante da Região 1, que abrange a Praia da Costa, no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (Comdur), lembrou que a Zeia não está ali por capricho.
“Esta Zeia não foi jogada agora, é de 2007. É uma área de amortecimento que, se você ocupa, sufoca. Então, se você ocupa uma Zeia, degrada o local. Aí não vai ter mais sagui vindo na sua casa, não vai ter mais bicho-preguiça. E tem bicho preguiça, sim, é de um estudo do Petrus [Lopes, do Instituto Jacarenema]”. Momentos antes, um morador da região, ao defender o projeto sob o discurso da segurança, disse que quer continuar a ver os saguis comendo banana nas mãos do seu filho. Outro duvidou com desdém da existência de bichos-preguiça no Morro do Moreno.
“O que está em questão não é a qualidade do Darwin, é onde ele vai se implantado na Praia da Costa. Tem que ser necessariamente em cima de uma Zeia?”, arrematou Irene Léia.
A consulta terminou com outra peraltice. Pegou mal para quem tanto celebrou a transparência e o diálogo durante todo o encontro, proceder como procedeu Fabrício no desenlace da consulta: em tom cordial, como que por mera curiosidade, pediu para que os presentes manifestassem opinião quanto ao projeto.
Sua voz era suave, cortês e afável: “Quem é a favor do Darwin na Praia da Costa por favor bata palma”. Uma ovação ensurdecedora inundou o local. Recobrado o silêncio, convocou diplomaticamente a manifestação dos contrários. Cinco ou seis braços se ergueram sobre as cabeças.
O que o representante do Darwin fez foi tingir de democracia uma demagogia; criar tortamente uma mobilização de apoio a um projeto que, por ora, goza apenas da ilegalidade. Uma manobra pueril não tanto para reforçar o apoio, mas sobretudo para isolar os críticos, estigmatizar os “cricris”. Agora imaginem se a unidade do Darwin no local for aprovada. As aulas de biologia ali serão, no mínimo, uma ironia.