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‘Que não fiquemos só na festividade no fim da pandemia’, profetiza Xico Celso

Resistência Carbonária reúne Leonardo Boff e Maurício Abdalla em live sobre capitalismo do desastre, ecologia e sociedade

“Espero que com o fim da pandemia não fiquemos só numa festividade e tenhamos realmente aprendido como somos incapazes sozinhos e como podemos ser capazes coletivamente”. A afirmação de Xico Celso, pilar capixaba do coletivo nacional Resistência Carbonária, sintetiza um desejo de como plasmar na consciência individual ou no espírito de cada humano, no curto prazo do mundo pós-pandêmico, o terreno fértil onde germinarão as sementes de uma estrutura econômica e política mundial que reflitam uma humanidade mais madura e próspera, capaz de sustentar a equanimidade da distribuição de renda, de oportunidades e de direitos universais garantidos. 

O grupo foi criado em 2015 como resistência ao impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef e reúne intelectuais, juristas, professores, cineastas, escritores e alguns militantes históricos, com objetivo de “intervir na realidade através de ações diretas na narrativa, para que a narrativa dos poderes dominantes tenha um contraponto”, explica Xico, um dos militantes históricos, nascido no Espírito Santo e para ele retornado há 15 anos, após quatro décadas de atuação em outros rincões.

Entre os livros já publicados pelo grupo, estão Resistência ao Golpe, de 2016, e Uma Sentença Anunciada, escritos por mais de 100 juristas, incluindo Carol Proner e João Ricardo. Há três meses, no auge do confinamento pandêmico, foi aberto um canal nas redes sociais para “intervir mais ainda na conjuntura, falando fora das nossas bolhas”, por meio de lives com expoentes do pensamento de esquerda do país. 


Advogado e coordenador do canal Resistência Carbornária na internet, Xico entende que a dimensão ambiental é parte indissociável do debate sobre a transformação radical que se enseja impingir ao capitalismo. Sobre ela, estarão reunidos na live deste sábado (22), o teólogo Leonardo Boff e o filósofo e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Maurício Abdalla.

“Eu creio que somente a partir da perspectiva de alteração estrutural do sistema capitalista é que a gente pode pensar e ter esperança em conviver em harmonia com a natureza. Enfrentar o sistema que gera essa destruição. Porque o ‘capitalismo do desastre’ é predatório à sociedade e à natureza”, pondera Xico, referindo-se ao termo cunhado no livro Doutrina do Choque, da jornalista e escritora canadense Naomi Klein, de 2008.

“O capitalismo que se aproveita de desastres naturais para lucrar. Essa corrida pela vacina. Quantos estão correndo pelo bem-estar e quantos estão correndo pra angariar lucro?”, questiona, estabelecendo um paralelo entre a atual ascensão da indústria de fármacos e biotecnologia, em função da pandemia de Covid-19, e o fato central trabalhado no livro de Naomi Klein, que foi o processo de privatização da educação proposta pelo economista Milton Friedman, papa da economia neoliberal, na ocasião da tragédia de New Orleans, em 2005, após a passagem do furacão Katrina, que destruiu os diques, inundando toda a cidade. Durante o período de reconstrução, ao invés de investir na reforma do ensino público, o governo distribuiu vouchers para que as famílias investissem nas instituições privadas.

O burrinho e a cenoura
O capitalismo, acentua Xico, “atua dentro de uma lógica de maximização do lucro, sem qualquer tipo de controle, por isso tem crises cíclicas”. O entendimento é ilustrado por ele pela alegoria de um burrinho (o capitalismo) que anda obstinado, ávido por atingir uma cenoura (o lucro máximo) pendurada à sua frente. “Ele nunca atinge, porque sofre estafa e para”, narra o militante. Cada parada, metaforiza, é uma crise, uma das seguidas crises do capitalismo, depois das quais ele renasce e segue sua saga de destruição descontrolada. 
Um dos convidados da live, Maurício Abdalla ressalta que cresceu o número de bilionários na América Latina durante esses meses de pandemia. “É uma característica do sistema. O capitalismo consegue pegar essas tragédias e transformar em fonte de lucro”, explana. “O que a pandemia nos diz sobre a forma de organizar a economia? O vírus não tem só dimensão sanitária, tem um contexto maior, envolve a maneira como nós interferimos na natureza e como o sistema se aproveita”, discorre, com olhar sobre as “perspectivas de reorganização do capitalismo em função do crescimento rápido e intenso do setor de fármaco e biotecnologia em função da pandemia”.

O setor, sublinha, “depende de doença, de pandemia, de medo da natureza”, o que nos leva a vislumbrar “como pode ficar a manipulação da ciência em favor de medicamentos”, à semelhança da manipulação feita pela indústria petroleira, atual hegemônica, mas em franca queda, em decorrência da redução do consumo do petróleo em razão do isolamento e distanciamento social.

O poder da indústria petroleira incentiva o uso de carros individuais, desestimula os combustíveis ecológicos e o transporte coletivo, chegando a pagar cientistas para questionar o aquecimento global, elenca o filósofo, citando denúncia feita pelo jornal The Guardian contra a Exxon Mobil, que teria oferecido dez mil dólares por artigo acadêmico que negasse as afirmações da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre aquecimento global. “Imagina a indústria de biotecnologia assumindo a posição de hegemonia, tendo que manter as ações na bolsa de valores na expectativa do mercado financeiro?”, provoca Abdalla.

Quais os impactos e possibilidades que emergem dessa “reorganização da hegemonia do capitalismo, com a possibilidade de redução do petróleo”? Redução de consumo que não tem se revertido em redução do preço, como geralmente acontece sempre que a demanda é menor que a oferta. No caso do petróleo, a redução da produção ainda não está sendo cogitada, devido à complexidade mecânica de se desativar poços de petróleo. Como nos alto-fornos das siderúrgicas, o trabalho de produção petrolífera é permanente, 24 horas sugando as riquezas submarinas e do subsolo. Daí surge a necessidade de estocagem, o que encarece o preço final que chega ao mercado consumidor em franco encolhimento.

“Pode baixar a produção de um poço, mas não parar, e a estocagem de petróleo custa muito dinheiro. A tendência é continuar baixando o consumo, mas o custo de produção vai continuar aumentando”, diz.

Brasil feminino e negro

Sejam quais forem os novos arranjos surgidos dessa troca de cadeiras do poder econômico, o que é preciso ser providenciado, enfatiza Xico Celso, é uma distribuição de renda mais justa. “Enquanto o Brasil tiver a distribuição de renda que tem, não tem condições de ter uma democracia. Democracia não coexiste com a fome, com a exclusão de camadas grandes da sociedade”, argumenta, citando uma medida, prevista na Constituição Federal, cujo debate pela regulamentação e implementação voltou a ganhar fôlego durante a pandemia: “a taxação das grandes fortunas, lucros e dividendos, heranças”. Enquanto há países com até 50% de imposto de renda, no Brasil é 27,5% sobre quem ganha três e quem ganha oitenta mil”, critica. 
Soluções? Caminhos? Varas de condão? Como distribuir a renda e fazer o poder verdadeiramente emanar do povo, honrando a semântica original da nossa “democracia sequestrada”, como disse em 2005 o escritor José Saramago, primeiro a trazer o Nobel de Literatura para a língua portuguesa, durante conferência no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS?

Para Xico, a solução passa inexoravelmente pela organização e empoderamento da população feminina e negra do país. “O Brasil é feminino e negro. Cinquenta e três por cento da população é formada por mulheres e 55,5% é negra. Essa maioria tem que tomar consciência que é maioria. Se empoderar do ponto de vista quantitativo, se organizar do ponto de vista qualitativo, e assumir a consciência histórica de que cabe a essa maioria que é triplamente explorada vanguadear o conjunto da sociedade para a superação do capitalismo construindo um sistema democrático e socialmente justo”, receita.

E essa organização, ensina Xico, começa por pequenos grupos nos bairros, nos locais de estudo, de trabalho, “pra que na pequena ou maior coletividade, vão aprendendo a discutir e intervir coletivamente na realidade”, entendendo assim “que não é o individualismo que vai resolver”.

‘É o homem que pertence à Terra’

A noção de coletividade e de conexão visceral entre a natureza essencialmente humana e a natureza planetária é invocada por outro convidado da live, o teólogo Leonardo Boff, de forma sistemática há quase trinta anos, em seus artigos, livros e conferências pelo Brasil e  mundo. 
Numa obra sua de 1995, Ecologia: Grito da Terra Grito dos Pobres, Boff invoca os cidadãos do mundo a vivenciar uma idealizada Era Ecológica, com “a volta à Terra como pátria/mátria comum”.

Após quase 300 páginas de explanação sobre o estado enfermo do planeta e a necessidade de “libertação” não só dos “pobres e oprimidos”, como defende a Teologia da Libertação, da qual Boff é um dos fundadores, e sobre a inegável constatação de que “a lógica que explora as classes e submete os povos aos interesses de uns poucos países ricos e poderosos é a mesma que depreda a Terra e espolia suas riquezas, sem solidariedade para como restante da humanidade e para com as gerações futuras”, o autor conclui a obra transcrevendo, na íntegra, o famoso discurso de Seattle, proferido em 1856 pelo cacique dos Duwamish, para o então governador do território de Washington, Isaac Stevens. O discurso foi uma resposta do chefe indígena à proposta feita pelo governador de compra das terras de seu povo e foi publicado pela primeira vez no dia 29 de outubro de 1877, pelo dr. Henry Smith, no Seattle Star.

Um dos mais célebres trechos do discurso afirma: “De uma coisa sabemos: a Terra não pertence ao homem. É o homem que pertence à Terra. Disto temos certeza. Todas as coisas estão interligadas como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. O que fere a Terra fere também os filhos e filhas da Terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que fizer à trama, a si mesmo fará”.

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