Texto: Henrique Alves
Fotos: Syã Fonseca e Apoena Medeiros/Agência Porã
Bem, encontramos Genésio repousado num leito hospitalar, convalescendo de cirurgia. Nada grave, segundo nos informa Lúcia, sua esposa; em poucos dias já deve ele estar em casa. O imprevisto, no entanto, nos levou a fatiar em duas esta tocante história.
A primeira parte, que vai abaixo, procura contar como se formou, ou foi formada, a trama que lançou Genésio no abismo do Esquadrão da Morte. A seguir virá a segunda, contando como ele vive, o que faz, pensa e quer.
A incrível e triste história de Genésio começa em setembro de 1965. Naqueles bons e velhos tempos – velhos, sim; bons, nem tanto, como se verá – Vitorinha era ainda mais Vitorinha com seus 20 mil habitantes. Uma graça. E é na Avenida Santo Antônio, que atravessava uma Caratoíra então pontilhada dos mais mornos e acolhedores lupanares de Vitorinha, que vemos o policial Genésio dando voz de prisão a Luiz Carlos Cypreste.
Há luta corporal. O meliante não só resiste como ainda tenta arrebatar o Taurus 32 do oponente. Uma inadvertência: na confusão, dois disparos são efetuados e uma pessoa sai ferida. Ninguém morre. O ferido é encaminhado ao hospital e operado.
No final ainda ganha do médico a bala que lhe fora extraída do corpo e, que, agora, vocês devem guardar. Acreditem: com essa mesma bala, daqui a quatro anos, Genésio irá matar duas pessoas.
Violência e a política passeavam a dedos entrelaçados no Espírito Santo dos anos 60, sobretudo no interior e mais notadamente em Baixo Guandu e adjacências, onde, como se sabe, se instalou a cúpula do enregelante Sindicato do Crime. Ostentando sólida articulação política, a organização arbitrava o bem e o mal, matando a serviço de grandes fazendeiros.
Em 67, já implantado o regime militar, Christiano Dias Lopes assume o governo e logo estabelece a extinção do Sindicato do Crime como objetivo. A empreitada fica a cargo de um homem de afamada truculência que traz do Rio de Janeiro para ser o novo Chefe de Polícia: José Dias Lopes, seu irmão.
Quando prefeitinho de Copacabana, José não dera moleza à bandidagem. Os marginais “sumiam”, digamos. Não demorou para usar métodos semelhantes em solo capixaba. Mas, missão dada, missão cumprida: José Dias Lopes investiu pesado contra o Sindicato do Crime, que recuou.
Em 69, a violência à capixaba recidivou sob nome de Esquadrão da Morte. A tétrica organização criminosa composta por delegados, escrivães e investigadores estourou anos antes em São Paulo, asseando a cidade da violência pelo método nada ilustrado da execução sumária.
Um furto de armas na Superintendência da Polícia Civil de Vitória, que, soube-se depois, fora arquitetado e operado por quadros da própria polícia, marca o nascimento do rebento capixaba do Esquadrão. As vítimas eram apanhadas nos presídios, supliciadas e desovadas nas areias da Barra do Jucu, em frente ao viaduto que comunica as rodovias do Sol e Darly Santos.
O novo governo decide combater também o Esquadrão da Morte. Como no Espírito Santo suspeitas recaíam até sobre as folhas das árvores, decidiu-se por um forasteiro para chefiar o inquérito. Embora também vindo do Rio, o delegado Fernando Schwab era capixaba e de família tradicional. A pretensa isenção diluiu-se ainda mais quando mais tarde se descobriu suas estreitas relações com José Dias Lopes.
Schwab era homem de holofotes e monta uma espetaculosa operação. Mas findo o show, descortinou-se o fiasco. Por muito barulho, pouca gente foi pega. Tanto que a mera antipatia bastou para incluir entre os denunciados um outro delegado que também trocara o Rio pelo Espírito Santo. E para engrossar ainda mais o caldo, Schwab incluiu o companheiro deste, um humilde e pacato policial. Sua graça: Genésio Cunha Silva.
Genésio é o único que ainda está vivo entre os cinco réus que foram julgados e condenados ao final do processo. Pegou 16 anos de prisão, acusado pelo homicídio de dois facínoras de apelidos aterrorizantes: Mosquito e Camiseta.
Ao todo foram 16 denunciados – um coronel da Polícia Militar, cinco delegados, um comissário de Polícia, sete investigadores e um civil. A Justiça considerou improcedentes os recursos de Ernane Barcelos, Nenir Costa, Helido Rocha, Oswaldo Simões Salles e Genésio.
Os cinco pegaram penas estratosféricas, mas, com o passar dos anos e por diferentes motivos, foram absolvidos. Ernane pegou 253 anos; Nenir, 173; Heldio, 180; e Oswaldo, também conhecido como Quito, incríveis 900 anos. Genésio ficou preso por 16.
Durval Albert (foto acima) preferiu não seguir o conselho do pai, um severo sergipano que queria o filho estudando Agronomia, e, meio à socapa, prestou vestibular para Direito. Ainda estava no primeiro ano da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim quando tomou conhecimento do caso Genésio.
Há mais de quatro décadas o hoje requisitado advogado criminalista acompanha a má sina do então policial. “Ele tinha sido motorista do DER [Departamento de Estradas de Rodagem do Espírito Santo] e largou para ir para a Polícia. Tinha dois táxis na época. Um cara bom”, lembra.
Mas, juridicamente falando, só entrou no caso a partir de 2010, quando procurado por Genésio. Durval Albert mexeu, fuçou, revolveu o processo e finalmente viu emergir ante si uma uma trama de provas plantadas, perícias imperitas, nulidades e lacunas, tudo desleixadamente tecido. Voltemos a Caratoíra.
Um dos tiros efetuados durante a luta corporal atingiu o braço de Cypreste; o outro atingiu José Carlos Gadiole Vieira, cidadão comum que por acaso palmilhava aquelas latitudes. Preocupado, Genésio largou Cypreste (que, como bom malandro, aproveitou a deixa e deu no pé) e foi prestar socorro a Gadiole.
Genésio conduziu-o para a Santa Casa de Misericórdia, onde o ferido foi operado e convalesceu por quase um mês. Da quase tragédia, Gadiole levou uma relíquia: a bala que o feriu, mimo do médico que o operou.
O episódio de Caratoíra serviu de prólogo ao bisonho auto que nasceria quatro anos depois, quando instaurado o inquérito policial para investigar o Esquadrão. O delegado Schwab apurou o caso, tomou o depoimento de Gadiole e apreendeu a tal bala para submetê-la ao trabalho de perícia no Rio de Janeiro. Se ainda hoje a Polícia Civil capixaba é mal amparada, imagine há 40 anos.
As condições técnicas de transporte de 40 anos atrás nos asseveram que teríamos pelo menos um mês entre um despacho Vitória/Rio e a subsequente resposta. Em 27 de agosto de 69, Schwab enviou o projétil para o Instituto de Criminalística do Estado da Guanabara. A resposta veio apenas cinco dias depois.
Segundo os laudos da perícia carioca, o Taurus de Genésio expeliu, sim, um projétil, oriundo de arma calibre 38, embora, ao mesmo tempo, registre que a arma é calibre 32. Ainda assim, bastou: a mesma bala que quatro anos antes ferira um cidadão por acidente foi a prova inapelável para a incriminação de Genésio no Esquadrão da Morte por dois homicídios.
Mas, vem cá, quis o inquérito policial dizer que um mesmo projétil vitimara duas pessoas – e ferira uma quatro anos antes? Incrível. E como explicar a seguinte afirmação no laudo pericial, referindo-se à Taurus 32: “Dita arma veio desacompanhada de munição”. Houve ou não exame de balística?
Em 1970, o promotor de Justiça Elias Faissal nega que o projétil extraído do corpo de Gadiole e, quatro anos depois, supostamente enviado à perícia, tenha sido submetido a exame de balística.
Mais tarde, o policial civil aposentado Jonas Siqueira disse, em depoimento, que a ordem de Schwab para recolher o projétil que atingira Gadioli se fizera com a “exclusiva finalidade de mostrar serviço”.
“Estarrecido, tomei conhecimento de que a perícia técnica do Rio de Janeiro informou que aquele projétil seria o mesmo que tirou a vida do marginal ‘Mosquito’, por cujo homicídio fora o Sr. Genésio condenado, o que seria de total impossibilidade”, afirma Jonas.
Em vão. O econômico porém eloquente sinete do crânio sobreposto a dois ossos cruzados já se gravara irreparavelmente naquela figura, que nunca matou ninguém e hoje, aos 80 anos, depende da mulher viver.