Certa vez Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do escritor Sérgio Porto – esteve em Mantena para entrevistar uns médicos. Publicado o texto, a foto de um médico se destacou: o doutor segurava uma bacia de ágata cheia de balas de vários calibres. Trinta e oito, vinte e dois, quarenta e quatro, trezentos e oitenta. A legenda era elucidativa: “Pelo visto nesta região não tem habitante, só sobrevivente”.
Quem conta o caso é o advogado Levy Pereira de Menezes, colatinense de 79 anos que cresceu em Barra de São Francisco e, portanto, testemunhou histórias e estórias da Guerra do Contestado, o litígio entre Minas Gerais e Espírito Santo iniciado em princípios do século passado e que só terminou em 15 de setembro de 1963.
Segundo ele, mais estórias que histórias. Levy tem uma frase de efeito eloquente sobre a diferença entre uma e outra: “Quem vivia lá no centro da coisa, sabe menos do que quem não viveu”.
A Guerra do Contestado é feita de histórias terrificantes de sangue e violência a reboque de pistoleiros frios e assassinos impiedosos; o medo e a morte assombraram o noroeste do Espírito Santo por sessenta anos, embora, em muitos casos, a violência tenha se alastrado antes por questões pessoais que por litígios políticos.
“A gente realmente passou muito medo, mas não por uma coisa que estava acontecendo, mas por medo de acontecer”, recorda. Levy diz que 90% das coisas que já leu é boato. Os fatos, se existiram, não foram tal como o relatado.
O coronel reformado da Polícia Militar do Espírito Santo, Orely Lyrio, comunga desse ponto de vista. Na manhã do último dia 15, ele foi um dos homenageados da solenidade que celebrou os 50 anos do acordo de paz do fim da Guerra do Contestado. Entre outras autoridades, estiveram presentes o governador Renato Casagrande e o governador de Minas Gerias Antônio Anastasia (PSDB).
“No Contestado, os mineiros e capixabas ficaram, um de um lado e o outro de outro, sem haver um entrevero, um conflito”, afirma Orely. O disse-me-disse, sim, esse pululava. Coisas como “Um mineiro atirou num capixaba…” chegavam-lhe aos montes. Mas ele não presenciou nada assim, destacando que, apesar de toda a movimentação das tropas, o ambiente entre capixabas e mineiros era o mais cordial possível.
Se os fatos são duvidosos, o medo é legítimo. Era a pior das sensações, a espera de uma coisa, terrível e destruidora, que toda hora parecia que ia acontecer. Mas nunca aconteceu. O conflito parecia sempre à beira da explosão. Ninguém vivia em paz com a angústia contínua, permanente e inexaurível de que a qualquer momento a força de Minas Gerais chegaria e arrasaria com tudo e a todos.
Nos últimos dias de julho de 1957, Orely Lyrio era um aspirante a oficial de apenas 22 anos quando o pelotão sob seu comando foi deslocado para Barra de São Francisco. No dia 19, o comandante-geral interino da PMES Pedro Maia de Carvalho seguiu para o município com os vários oficiais do seu Estado-Maior. As movimentações de tropa para a área litigiosa seguiram pelos dois dias seguintes.
No dia 26, Orely recebe a informação: “A situação se agravou”. Na manhã do dia 30, ele e seu pelotão de 30 homens armados com fuzis, pistolas e cunhetes embarcaram no trem Vitória-Minas na Estação Pedro Nolasco. Desembarcaram em Colatina para aguardar o caminhão que transportaria o contingente até Barra de São Francisco. Em 1° de agosto, mais dois pelotões deixaram Vitória rumo ao noroeste capixaba.
Orely não ouviu um estampido de tiro sequer. As tropas ficaram abivacadas. Também foram preparadas trincheiras, embora a estratégia da força capixaba fosse defensiva: seria desproporcional um conflito entre as PMs capixaba e mineira, com ampla vantagem para esta, claro. O então aspirante permaneceu em Barra de São Francisco até o final de agosto, quando o Comando-Geral deu a questão por encerrada.
Em 1914, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a Serra dos Aimorés como limítrofe entre os estados. A decisão recrudesceu as tensões; ambos contestavam a demarcação. Segundo a versão oficial, mineiros e capixabas disputaram uma rica região de café de mais ou menos 10 mil quilômetros quadrados, localizada na região de Mantena (MG) e Barra de São Francisco, noroeste capixaba.
O advogado defende a tese de que Minas Gerais almejava mesmo uma saída para o mar; o objetivo era chegar a Conceição da Barra. O advogado saca uma frase, que atribui ao político mineiro Teófilo Ottoni: “O mar soluça e geme por estar longe de Minas Gerais”. Pelo mar ou pelo café, os dois lados mobilizaram tropas. Mas nunca houve confronto direto.
Apesar da discordância com a maior parte das histórias sobre o Contestado, nota-se em Levy uma postura de respeito à interpretação alheia. Quando pedimos um exemplo de uma história mais contundente, ele responde: “A história é essa: ‘vai haver invasão’”. E as almas e os lares se afundavam em terror e insegurança.
Levy nasceu em Colatina em 1934, mas cresceu mesmo em Barra de São Francisco. Aqui sua história começa nos primeiros dias de 1945: era 29 de dezembro de 44 quando deixaram a Princesinha do Norte para passar o ano-novo nas poeirentas estradas de terra do interior capixaba. Ainda hoje se lembra de Ford 42 em que ele, a mãe e os quatro irmãos viajaram por quatro dias.
O pai era oficial de justiça em Colatina e foi convidado pelo prefeito nomeado de Barra de São Francisco, o major reformado do Exército, Manoel Vilar, para ser fiscal da prefeitura. À época o município era uma espécie de sentinela avançada do Espírito Santo para resguardar o território capixaba das investidas mineiras. “Aquilo era uma Amazônia mirim, só tinha mato e mais nada”, define Levy.
Começou a trabalhar aos 10 anos de idade. Aos 18, foi trabalhar no fórum da cidade. Em 64, entrou no curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Nem assim, deixou sua terra: passava três, quatro dias em Vitória e depois voltava para trabalhar. Só deixou Barra de São Francisco em 74.
Nos 20 anos que passou sob a tensão do Contestado, ele notava claramente a atmosfera de medo que pairava dentro de casa. Mesmo criança, ele lembra que já andava pelas ruas atento, às pessoas, aos lugares. Os pais advertiam-no, restringindo a ida a certos locais. Quando a boataria se fazia carregada, a tensão era visível no olhar do povo; quando esvanecia, notava que as pessoas saiam mais e até trabalhavam mais.
“Havia uma guerra de nervos”, crava Orely. As tropas abriam trincheiras e faziam rondas como se vivessem a expectativa de uma guerra. Os pelotões guardavam os pontos sensíveis e críticos, se postavam em regiões táticas e estratégicas. “Não sabíamos a que ponto ia chegar aquela movimentação de tropa” diz o militar Orely. O civil Levy, também não.
Em 1958, o aspirante Orely foi promovido a Tenente. Em 25 de fevereiro, foi deslocado para Barra de São Francisco para comandar o destacamento da região contestada, que pelo lado capixaba compreendia também os municípios de Ecoporanga e Mantenópolis. A ordem era realizar policiamento para evitar crimes e contravenções. Mas Orely ficou apenas um mês: logo foi recolhido.
Ele não sabe por que sua segunda e derradeira passagem pela região contestada foi tão rápida. Mas, a julgar pela missão dada ao Tenente, entrevê-se uma hipótese.
Não poucos viram no Contestado não uma zona de medo e tensão, mas uma fonte de ventura econômica e prosperidade política. A ausência de limítrofes oficialmente demarcadas na região contestada gerou substancial insegurança jurídica. As localidades tinha dupla jurisdição, no mesmo espaço convivendo autoridades capixabas e mineiras.
Figuras como o coronel Floriano Lopes Rubim agiam para manter a situação litigiosa. Graças ao Contestado, Rubim construiu expressiva carreira política. Elegeu-se deputado estadual (1951-55) e federal (1955-59; 1963-67; 1967-71). O coronel Pedro Maia de Carvalho, após as movimentações de 57, deixou o comando da PM para depois eleger-se deputado estadual.
Por outro lado, o reino da paz desestabilizaria uma ampla e arraigada rede de corrupção e propina que azeitava as engrenagens de um sistema, digamos, específico de negócios agrícolas. A incidência de tributos na zona contestada era menor, razão pela qual produtos mineiros e capixabas oriundos de fora da área contestada, sobretudo o café, saíam com guias tributárias de lá.
A festa (para uns, claro) acabou em 15 de setembro de 1963, quando os governadores Magalhães Pinto, de Minas, e Francisco Lacerda de Aguiar, do Espírito Santo, assinaram o Acordo do Bananal.