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Reportagem especial O dono do pedaço

Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Agência Porã
 
Mal se entra na casa de Roberto e já se ouve o rugir dos tratores. Seguimos por um pequeno corredor, que se abre para o quintal. Deveria ser uma área de descanso, mas ali sensação é opressora: um tanque de proporções descomunais invade toda a paisagem. Uma imagem brutal, o tanque está colado à casa. Enquanto isso, o rugir dos tratores fica mais raivoso e um novo ruído se apresenta: um ruído grave, monótono e persistente.
 

Sobe-se à laje e tudo se explica. À esquerda, três tratores trabalham sem descanso, produzindo uma balbúrdia enlouquecedora. À frente, a brutal torre brota do solo a apenas cinco metros de distância. À direita, a fonte do ruído monocórdio: um grande caixote de concreto por cuja parede vaza um grosso tubo prateado que se comunica ao tanque. 

 
“Esse barulho são os motores do condensador que manda refrigeração para dentro do shopping”, explica, resignadamente, o dono da casa, o serralheiro Roberto Araújo, que mora no encontro das ruas Hernani Souza com Jovercino de Souza há 30 anos, mas há um ano e meio não sabe o que é paz. Esta, explica, era chegar em casa à noite, deitar no sofá, ver TV e depois dormir sob o silêncio da noite, sem incômodo ou estorvos. Uma vida que se perdeu desde que as obras daquele setor do Shopping Vila Velha foram iniciadas. 
 
Apenas um muro de três metros de altura separa a casa de Roberto do canteiro de obras do prédio que abrigará os cinemas e o Carrefour. A entrada da casa fica no fundo do terreno, após o corredor e o pequeno quintal e, uma vez dentro da casa, de um lado da parede está o shopping e, do outro, a cozinha de Aparecida Araújo, esposa de Roberto. 
 

Em cima, na laje, vê-se mais especificamente os vizinhos da cozinha: um retrato repugnante de entulhos reunidos junto à parede e, como chovia na manhã de terça-feira (17), uma água escura ali se acumulava. Se essa água continuar, diz, daqui a pouco a parede da cozinha apodrece. Na terraplanagem a casa de repente tremeu inteira. Roberto foi à laje a verificar: por acidente, uma máquina lançara uma portentosa pedra contra a parede da cozinha. Apenas um susto.

 
Susto maior e dor de cabeça ele teve três semanas atrás. O grande caixote de concreto e a descomunal torre formam uma espécie de estação de refrigeração do shopping. A torre armazena e resfria água; o caixote a condensa. 
 
Eram cerca de 20h quando Roberto escutou um barulho. Pelo som, sabia que era água, mas a intensidade do jorro o intrigou. Estava na sala, deitado no sofá. Levantou-se, foi à laje e veio o susto ao se deparar com um jorro furioso. Um cano da central de condensação estourara. Interpelou um operário: “Não mexo com essa parte”, ouviu. Então ligou para o presidente da Associação de Moradores de Divino Espírito Santo, Nedson Alves Martins Filho. Ficaram lá na laje até 0h registrando o acidente em fotos.
 

Enquanto isso, a água já invadira o quintal de Roberto, entrara pelo corredor e desaguava pelo portão da frente da casa. Um horror. A garagem do vizinho ficou tomada de água. 

 
Aqui vale um parêntesis: a água entrou na garagem do vizinho por um buraco de cerca de meio metro de diâmetro provocado em mais um acidente das obras do shopping. Está lá, escancarado, há mais de um ano. O shopping nada fez, a não ser um remendo tosco: chumbaram uma sólida placa junto à parede. Nada adiantou. A água da chuva daquela terça se acumulava ali também; se subisse mais alguns centímetros, vazaria para a garagem do vizinho.
 
Nedson então ligou para Natalino Littig, diretor da Construtora Littig Engenharia, e este respondeu que já estava enviando uma equipe para consertar o problema. Cansado e preocupado, Roberto foi dormir. A equipe até veio, mas só às 7h do dia seguinte.
 

Cinco casas depois, mora a pescadora Marluce Rufino Guimarães, 41, membro da colônia de pescadores de Itapoã. É neta e filha de pescadores. Suas três filhas também herdaram a habilidade. “Meu marido está lá. Se ele pegar peixe, ele me telefona para eu ir vender. Chegando o verão, todo dia ir no orla que você me acha lá”, diz. Na casa moram ela, o marido, uma sobrinha e uma neta.

 
Ela gostaria que as três filhas também morassem com ela. Para isso, começou a mexer nos fundos do terreno, que faz divisa com as obras do Shopping Vila Velha. Até agora, terminou apenas o quarto e sala da mais nova, Talia, 16 anos e grávida de sete meses. Mas não adiantou muito. O quarto de Talia é um cômodo escuro e abafado. A janela vive fechada. 
 
Talia apareceu dia desses com o nariz sangrando. Como isso nunca aconteceu na família, a mãe receou pela saúde da filha grávida. Levou-a ao médico. A doutora perguntou: “Vocês ficam em um ambiente com muita poeira, umidade?”. Marluce foi franca: “Fica. Estão construindo um shopping atrás da minha casa”. Tália já fez quatro exames, que ainda não detectaram a causa do sangramento.
 
Marluce limpa a casa todos os dias. Tália troca a roupa de cama também todos os dias. No quarto dela, uma grossa camada de poeira cobre o rack da TV. A obra já quebrou uma dos vidros da janela e rachou outro no quarto da menina, concluído há apenas cinco meses. A poeira e o barulho expulsam Talia de sua casa. Ela acorda, limpa o quarto e vai para a frente da residência, ficar com os pais.
 

Às vezes o barulho é tão ensurdecedor que expulsa todo mundo da casa: a saída é ficar na rua, à mercê da boa vontade do shopping. Certa vez, o trabalho de quebra de blocos de concreto fez a casa toda balançar. O marido de Marluce foi ter com os operários. Nada. A casa tremeu novamente e lá foi ele de novo. Por sorte, um dos responsáveis pela obra se encontrava no canteiro e só então o quebra-quebra foi retomado em uma área mais afastada.

 
O episódio é um bom resumo da relação dos moradores com o monstro que se ergue às suas respectivas portas. A cada problema aparece uma coisa fica mais clara: não existem responsáveis. Roberto até entende quando, ao lidar com um operário, este responde: “Só cumpro ordens”. 
 
O empreendimento e os moradores são apenas fisicamente vizinhos. O muro de Roberto separa dois mundos. De um lado, um dos mais precários bairros de Vila Velha, daqueles que só aparece nos jornais sob o signo da violência e do tráfico de drogas; do outro, um dos grupos empresariais mais poderosos do Espírito Santo. E a Prefeitura de Vila Velha? Tão-somente um detalhe – a favor do empresariado, claro.
 
Inaugurado em agosto deste ano, o Shopping Vila Velha se pretende um dos maiores do Brasil. Fisicamente, é um colosso encravado às margens da Avenida Luciano das Neves, em Divino Espírito Santo. São 200 lojas-satélite e 26 âncoras e megalojas, oito salas de cinema e projeto para construção de três torres comerciais (onde?). O estacionamento oferece 3.200 vagas.  
 
O shopping é uma obra de três colossos empresariais: a construtora Littig, o Grupo Incospal e a BRMalls. O destaque vai para as duas últimas. A BRMalls é a maior companhia de shopping centers da América Latina. O Grupo Incospal tem participação em grandes empresas, como a Unimar (uma das integrantes de um dos consórcios vencedor da licitação do Transcol), a Cisa Trading e a, dispensa apresentações, Rodosol.
 
Para além disso, o Shopping Vila Velha é um mais capixabíssimo rebento da onipotência empresarial perfumada de arrojo empreendedor com a conivência do poder público envernizada da promessa de progresso e geração de emprego. 
 
Empreendedorismo e progresso que pouco têm a ver com o que Roberto vê, ouve, sente, vive todo santo dia. Ele se acostumou ao barulho, à poeira, à umidade, mas não a uma preocupação maior, uma incerteza que lhe corrói a serenidade. Antes do shopping nascer, a laje da casa seria uma nova residência; a parte de baixo, um espaço aberto. Mas hoje a laje se resume a uma estrutura precária não pela dificuldade natural de erguer uma nova casa. É antes uma obra que ficou pelo caminho.
 
Marluce Rufino amarga angústia semelhante. Queria reunir as filhas ali “para não sofrerem no aluguel”. As novas casas seriam erguidas nos fundos do terreno. Mas só terminou o quarto e sala da mais nova, Talia, 16 anos e grávida de sete meses. A de 20 anos, que acabou de ter um filho e com o ensino médio recém-concluído, hoje mora de aluguel. Com casa própria, explica a mãe, esse dinheiro poderia ser investido em um curso de qualificação. 
 
O medo de Roberto e Marluce estão nos projetos da Prefeitura de Vila Velha de abertura de vias na região. Mais especificamente, no de expansão da Rua Jair de Andrade, que atravessaria a Avenida Luciano das Neves para se ligar à Hernani Souza. Desapropriações seriam necessárias – como a da casa de Marluce, que estaria no novo traçado da rua. “Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer ali e isso causa aflição nos moradores. É um projeto que eles [a prefeitura] negam que exista, mas em alguns momentos, afirmam que têm”, diz Nedson. 
 
As obras que se desenrolam a todo vapor atrás das casas de Marluce e Roberto levantam mais dúvidas: como será realizado o trabalho de carga e descarga do Carrefour, em uma área de nove mil metros quadrados?
 
Dúvida que os leva à Rua Araré e à casa do técnico em laboratório Marcos Antônio Ataídes, 49. A Araré é uma rua estreita e sem saída, que desemboca no terreno do shopping, margeando, de um lado, o prédio dos cinemas e do Carrefour. Do outro, uma casa divide dois pedaços de terreno do shopping, cercados por um tapume metálico. 
 

Nascido naquela rua e há dez anos morador de uma casa de três pavimentos, Marcos já recebeu um convite de representantes do empreendimento para uma reunião, ocorrida no escritório do shopping, em Itapoã. Fizeram uma oferta pela casa, mas falaram em valores, apenas apresentaram uma proposta: uma casa em Interlagos ou uma no terreno que ele escolhesse. A residência vizinha também está na mira do shopping.

 
Marcos elegantemente agradeceu e foi embora. Não viu vantagem: se em Divino Espírito Santo ele acorda às 4h para ir trabalhar, imagine se morasse em Interlagos? Os empresários não esclareceram o porquê do interesse pelas casas.  “Eles escondem. Dizem que não tem interesse em nada aqui”, explica Nedson. Mas para ele uma coisa é certa: o interesse é abrir ali um canal, em conexão com a Luciano das Neves, para a carga e descarga de material.
 
A aflição dos moradores com essa sombra de incerteza que o Shopping Vila Velha lançou sobre Divino Espírito Santo tem raízes no processo de formação do bairro. Como boa parte da história da ocupação canela-verde, a região é fruto de ocupação desordenada de fazendas nos anos 70. Muitas casas da região não detêm o título pleno de propriedade. A associação calcula um número entre 400 e 500 imóveis.  
 
A chegada do shopping suscitou o medo dos efeitos do furacão da especulação imobiliária e de uma conseguinte exploração da fragilidade fundiária da região. Roberto resume: “Tirar a gente daqui, maior alegria, não tem problema. Mas tem que ser uma compensação para continuar dentro do bairro. Para longe eu não vou”. Segundo Nedson, a prefeitura, em caso de desapropriações, indicou a disposição de cobrir apenas as benfeitorias – e não os terrenos. 
 

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em setembro entre o Ministério Público Estadual (MPES), o shopping, a prefeitura e a associação de moradores é o claro indício de que, um, não há um diálogo franco entre moradores, poder público e empresariado, e, dois, o planejamento para instalação do shopping não correspondeu à envergadura do empreendimento. Uma história capixabíssima e canela-verdíssima.

 
O documento obriga o empreendimento a cumprir 19 condicionar para minimizar os impactos no bairro. Seu principal ponto trata da regularização fundiária na região. O TAC obrigou o shopping a contratar escritório visando facultar a moradores a regularização fundiária (documental) de seus terrenos. Os moradores devem residir no perímetro formado pelas ruas Luiz Gabeira, Alan Kardec, Luciano das Neves e o shopping. A área abrange as casas de Roberto, Marluce e Marcos.
 
As ruas Araré e Manoel Freitas Dias também infundem na comunidade. Nedson acusa o shopping de ter invadido cerca 15 metros da Araré; já a Manoel de Freitas Dias foi incorporada ao terreno do shopping. Os moradores protestaram e a rua foi devolvida, mas apenas cinco metros de rua. “Eles estão comprando as casas à margem da Luciano das Neves e estão avançando sobre a rua para levar o terreno até a Luciano das Neves”, afirma o líder comunitário. 
 
Esse assédio sobre o espaço público é grave em um bairro com 12 mil habitantes em que não há uma única praça. Também não há Unidade de Saúde. São quatro escolas públicas: uma estadual de ensinos médio e fundamental (Agenor de Souza Le), duas municipais de ensino fundamental (Prof. Ernani Souza e Luiz Malizeck) e a creche Tia Nenzinha. 
 
Roberto diz uma frase sintomática: “Eles estão melhorando… as ruas para ter acesso ao shopping”. Um breve passeio pelas ruas internas do bairro e a frase fica clara: o que há é apenas pavimentação das ruas do entorno ou de acesso ao centro. O asfalto brilha de tão novo. Mas não há sinalização, vertical ou horizontal. 
 

A rotatória que liga as ruas São João (que vem da Universidade de Vila Velha) e Hernani Souza concentra um fluxo caótico de ir e vir de carros. A Hernani Souza

 
A Coronel Luís Gabeira é um exemplo. A Hernani Souza cruza a rotatória, mas a ausência de sinalização conduz os motoristas para a Luís Gabeira, endereço da creche Tia Nenzinha. A situação coloca a perigo pais e filhos na entrada ou saída da creche, já que, para piorar, as calçadas da rua estão em péssimo estado. Quadro semelhante se verifica na Hernani Souza, onde está a escola homônima.
 
Nedson também registra o atropelamento de pelo menos cinco moradores nos últimos meses no cruzamento da ruas Moema e Allan Kardec. Um cruzamento de trânsito intenso, que recebe o fluxo dos bairros Centro, Glória, Itapoã e Boa Vista. A associação de moradores já protocolou na prefeitura inúmeras solicitações de apoio da Guarda Municipal para orientar o trânsito pelo menos nos horários de entrada e saída dos alunos da creche e da escola. Sem êxito.
 
Esse panorama é resultado do aumento da circulação viária na região. A região de Itaparica vive um vertiginoso crescimento imobiliário. O mais recente censo imobiliário do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Espírito Santo (Sinduscon) indica 15.431 unidades em construção em Vila Velha, dos quais cerca de metade, 7.247 unidades, estão em Itaparica. 
 
A perspectiva não é das melhores com a inauguração do Carrefour e das salas de cinema. “As ruas internas do shopping não suportam o fluxo, não foram preparadas para isso. Teriam que ter feito um estudo de viabilidade viária e verificado a necessidade de abertura de ruas. Não fizeram”, critica Nedson.
 
A incerteza leva Roberto a um ato de fiscalização diária das obras. Melhor: nem se trata de fiscalização, trata-se de vigília. Na ausência do diálogo, seja com a prefeitura, seja como empresário, a precaução é o melhor remédio. “Por enquanto, a prioridade deles é ajeitar as ruas para ter acesso ao shopping”, diz.
 
Para a pescadora Marluce, a sensação é de estar em um barco sem remo. É aterrorizadora a perspectiva de sair de um lugar – onde trabalho, escola, amigos, família estão todos perto – e se mudar para outro. “ É praticamente perder uma vida. Se eu perder isso aqui, é como se eu perdesse um braço”, diz. Seria também o fim daquele sonho de dar uma vida melhor para as três filhas. “Progresso deveria ser bom para todo mundo. Mas vai ser bom só para eles? Isso pra mim é destruição das famílias”, fuzila, as palavras saindo quentes da sua boca. 

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