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Reportagem especialBala Perdida II

Texto: Henrique Alves
Fotos: Syã Fonseca e Apoena Medeiros/Agência Porã
 
Genésio Cunha Silva permanece uma incógnita, tanto para vocês quanto para este repórter. Nunca o vi: não sei sua altura, cor de pele, se seus cabelos são bastos ou ralos, se tem queixo proeminente ou delicado, se o que lhe dá brilho aos olhos é a revolta, a tristeza ou a resignação.  
 
Há quase duas semanas, ele se recupera de uma cirurgia de hérnia na região da virilha. A idade avançada, 80 anos, torna o procedimento mais delicado, vedando-lhe os mínimos esforços. Compreensivelmente não pôde nos receber. 
 
Apesar disso, nada impede a tentativa de traçar-lhe um perfil. O caso em si, como Genésio se encaixa nele e, mais além, como Genésio reagiu a ele, nos fornece indícios de sua persona.
 
Em 2010, Genésio subiu ao terceiro andar do Edifício Heitor Lugon, na Rua Pedro Palácios, Centro de Vitória, e ao escritório do advogado criminalista Durval Albert entraram ele e um fardo de 40 anos. Homem de poucas posses, procurou um dos profissionais mais renomados da advocacia criminal capixaba na esperança de encontrar paz de espírito.
 
Albert (foto ao lado) figurou em inúmeros casos rumorosos: para nos limitarmos a episódios recentes, atuou como advogado de defesa do juiz Antônio Leopoldo e do empresário Sebastião Pagotto. Não é qualquer um que pode cobrir seus honorários. 
 
Ainda assim – “por uma questão de memória”, segundo explica – ele mal se habituara às salas da faculdade de Direito quando começou a acompanhar o caso – resolveu ajudar o ex-policial. Sua voz grave não baixa a guarda para dúvidas ou hesitações quanto à inocência dele.
 
A história de Genésio sempre será a história dos poderosos ou, o que dá no mesmo, a história dos vencidos. Ela pertence àquela remota ilha tingida de lirismo de que às vezes nos falam os lamentos nostálgicos dos mais antigos. Mas se certas cores de outrora se embotaram, outras continuam tão vivas como antes.
 
O processo do Esquadrão da Morte denunciou 16 pessoas, mas apenas cinco foram condenadas. Uma capixabíssima rede de proteção abrigou os poderosos; toda a ignomínia de integrar um grupo de extermínio pespegou apenas nos mais fracos. Quatro morreram e hoje apenas Genésio carrega sua cota de infâmia.
 
Andava armado? Andava pois a época assim o exigia – sobretudo a um policial, brasonado ou não. Falamos do Esquadrão da Morte, organização composta por quadros das polícias civil e militar. O interessante é que as próprias investigações, via o indício torto da culpa de Genésio, apontam que o Taurus 32 daquele membro do baixo clero da polícia não foi algoz de ninguém. Não lidamos, assim parece, com um barra-pesada. 
 
Como uma peça frágil numa trama específica de relações de poder, nosso Josef K. não tinha meios de resistir à vertigem de atos gratuitos e autoritários que se sucedeu. Até hoje Genésio tenta se reerguer. A aposentadoria a que teria direito como policial, a condenação lhe tirou. Ele nada tem de seu.
 
Na cabeça deste repórter, pertencente a uma geração bem posterior à que testemunhou os feitos do Esquadrão da Morte, borboleteiam muitas questões: que sentimento de coragem, ou de fé, ou de revolta, ou de seja lá o que for, amparou este homem por todos esses anos? Por que ele insiste na busca pela verdade, mesmo fragilizado pela idade avançada e combalido por uma vida de pobreza e desonra? Quanto pesa 40 anos de injustiça? 
 
Genésio passou 16 anos na cadeia e depois sobreviveu como motorista. Morava na Serra com a esposa, Lúcia. Faz pouco tempo, se mudaram para Fundão. A cirurgia o obrigou a passar alguns dias em um leito do Hospital Dório Silva. 
 
Na cabeça de Genésio, pode ser que para a maior parte das pessoas pesa-lhe a culpa de um desvio moral, como se realmente a decisão sobre a vida e a morte de dois seres humanos tenha repousado por um instante em suas mãos e ele, inapelável, realmente tenha elegido a opção mais bárbara.
 
Na minha cabeça de repórter, o sentimento de que cometer uma injustiça é tão abjeto quanto cometer um crime corroi Genésio por dentro e ao mesmo tempo o mantém vivo, digamos assim. 
 
Via de regra, o culpado busca a autorredenção e a redenção social – ou pelo menos uma das duas. Genésio pelo visto não almeja auto-expiação nenhuma. Há no coração dele um recanto de serenidade, uma fresta para uma brisa de alívio: ele sabe, ou melhor, ele confia na própria inocência. Escusa-se, pois, de fabricar provas para si mesmo.
 
A tormenta é que essa inocência não é socialmente legitimada. Se a Justiça declarou-o culpado, quem poderia refazer essa sentença, senão a própria Justiça? Pouco adiantam os berrantes indícios de provas plantadas que se vê no processo. Daí Genésio se lançar numa jornada épica em resgate da própria honra. Mesmo aos 80 anos, mesmo após uma vida de dificuldades.
 
Genésio é cidadão humilde, a gente fecha os olhos e facilmente o vê tomando um ônibus, acomodando-se cauteloso no assento e, finalmente, lançando um olhar inexpressivo, desses que a gente vê aos montes num Transcol às seis da tarde, para as ruas lá fora.
 
Mas uma coisa é ser humilde, outra é ser um tolo. Genésio demonstra firmeza de caráter em querer se livrar do pesadelo kafkiano em que o precipitaram e, talvez tão importante quanto, em não querer morrer com o sinete do Esquadrão da Morte assinalado na pele. 
 
E demonstra coragem. Não falamos de uma caso isolado, obscuro e incógnito. A extinção do Esquadrão da Morte foi projeto de governo, isto é, envolvia gente poderosa. Rebelar-se contra um ato de justiça, no caso, significaria rebelar-se contra um núcleo específico de poder. 
 
Numa cidade que nas décadas seguintes registraria crimes marcados pela repercussão e pela impunidade, quem se importaria com um motorista simples e sem sobrenome? E com o laivo de uma condenação por integrar uma das mais horrendas organizações criminosas que o Espírito Santo já viu. Quem?

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