Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Porã
Dados de 2001 da Secretaria Extraordinária de Ações Estratégicas (Seae) do governo estadual apontam que houve 51 homicídios na Região da Grande Terra Vermelha em 2011. Foi o maior índice encontrado entre 10 aglomerados da Região Metropolitana da Grande Vitória (abaixo vem Feu Rosa, São Pedro, Nova Rosa da Penha e Nova Betânia, para ficarmos nos cinco primeiros).
O levantamento está em um relatório de 2011 produzido pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) que traçou um diagnóstico de equipamentos públicos na região para subsidiar o Programa Estado Presente, do governo estadual. O aglomerado canela-verde apresentou nada menos que 2,8% dos homicídios registrados em todo o Espírito Santo no período pesquisado.
Outro estudo: o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do estudante de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Fernando Domingos Vieira Sartório, que se debruça sobre a evolução do “tecido urbano” da Grande Terra Vermelha desde a década de 70 até hoje.
O trabalho cita o censo imobiliário de 2011 do Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Espírito Santo (Sinduscon) indicava que 49% dos lançamentos imobiliários da Grande Vitória – aqui, além da capital, Vila Velha, Serra e Cariacica – brotavam em solo canela-verde.
Mas, ao mesmo tempo, na mesma cidade que dá tantas alegrias ao poder imobiliário capixaba, o TCC descortina um panorama de extrema precariedade habitacional na Grande Terra Vermelha: a região ainda hoje apresenta um sem-número de problemas de regularização fundiária, com diversos lotes em disputas judiciais e loteamentos inteiros sob o risco de serem cancelados na justiça em função de irregularidades com a lei. Há ainda o contraste gritante promovido por suntuosos lançamentos imobiliários ao longo da Rodovia do Sol.
A Câmara Federal aprovou no último dia 4 o projeto de lei que regulamenta a criação de novos municípios. Como o texto recebeu alterações, ele voltará para votação no Senado. Segundo o projeto, nas regiões Sul e Sudeste, o município a ser vriado deverá contar com no mínimo 20 mil habitantes – caso da Região da Grande Terra Vermelha.
O nascimento de novos municípios – por criação, incorporação, fusão ou desmembramento – demandará a realização de Estudo de Viabilidade Municipal (EVM) e consulta por plebiscito dos moradores dos municípios. A assinatura de 20% dos eleitores locais é outra obrigação. Na Grande Terra Vermelha, houve recolhimento de assinaturas ano passado.
Professor do Departamento de Geografia da Ufes, orientador do trabalho de Fernando Domingos e autor de estudos sobre a região, Cláudio Zanotelli mostra pessimismo com o desmembramento da Grande Terra Vermelha. “Serão municípios invisíveis, sem condições de se manter, e com novas estruturas burocráticas”, analisa.
Ele evoca o tema da integração, até aqui mais virtual que real, da Região Metropolitana da Grande Vitória: para o professor, o correto seria criar dispositivos e instâncias para agregar a cidade e não um instrumento para segregá-la ainda mais. “Isso é mais oportunismo político de que está propondo do que propriamente algo coerente”, critica.
Embora haja na região uma certa infra-estrutura comercial, Zanotelli lembra que parte considerável dos habitantes da região trabalha em outros lugares. “Como a região vai se sustentar”, questiona. Eis a grande questão: como uma região com severos índices de violência e graves problemas de ocupação do solo vai se manter uma vez emancipado?
A história de Terra Vermelha é uma história conflituosa que envolve menos seus moradores do que um poder imobiliário predatório e um poder público, estadual e municipal, omisso. Ocorrida em maio, a recente e violenta história de reintegração de posse em uma área em Vista Linda é mais um indício do grave problema fundiário da região.
Os primeiros loteamentos aprovados pela prefeitura na região da Grande Terra Vermelha datam da década de 50, porém não em quantidade expressiva, o que só ia ocorrer na década de 70, ao fim da qual havia 17 loteamentos aprovados. Ainda assim não é registrada ocupação: este processo só vai se efetivar a partir do final dos anos 80.
Antes, porém, é preciso destacar a estruturação viária da parte sul de Vila Velha a partir na década anterior, com a finalização da construção da Avenida Carlos Lindemberg, Rodovia do Sol, Darly Santos e o início da edificação da Terceira Ponte. Como se sabe, infra-estrutura significa valorização do solo e a nova estrutura viária atraiu imobiliárias e estimulou a criação de loteamentos irregulares ou clandestinos em propriedades privadas.
Há ainda as frentes de ocupação promovidas por movimentos sociais, destacadamente nos anos 80, quando a falta de moradia, como nos mostra a história de São Pedro, em Vitória – ou Jaburuna e Santa Rita, em Vila Velha – era um dos grandes dramas da Grande Vitória.
Era a época dos grandes projetos industriais e de um certo discurso, ainda hoje enunciado, de empregos abundantes e progresso para todos. A região metropolitana absorvia trabalhadores do interior do estado e de estados vizinhos. Não havia moradia par todo mundo, razão pela qual manguezais e morros viraram a alternativa imediata para os sem-teto da época.
Aí nasce Terra Vermelha. O então governador Max Mauro recorre a uma área desapropriada (o Loteamento Brunella II) pela gestão anterior e promove o loteamento do bairro Terra Vermelha: a ideia era erguer 575 casas para famílias em situação de risco – habitando manguezais e encostas – espalhadas pela Grande Vitória, espacialmente famílias do bairro Dom João Batista, em Vila Velha.
Localizado em um manguezal, e na foz da bacia do Rio Aribiri, o bairro está mais que sujeito a inundações. Ainda assim, em meados dos anos 80, foi transformado em loteamento de interesse social e urbanizado.
As primeiras casas de Terra Vermelha são entregues em 1989; duas etapas seguintes completaram o processo, em 1990 e 1991. A escolha dos contemplados com novas habitações se deu com a intermediação dos movimentos sociais da região. A partir daí, a Grande Terra Vermelha conhece uma densificação, estimulada pela expectativa de que, agora, a região seria contemplada com infra-estrutura.
Ilusão. Hoje a Grande Terra Vermelha é uma área com cerca de 47 mil habitantes que ainda sofre de graves achaques urbanos e sociais. Bairros brotaram desordenadamente ao redor de Terra Vermelha sem qualquer planejamento público. A exceção fica por conta de Residencial Jabaeté: o bairro nasceu de uma desapropriação de área privada pelo governo Albuíno Azeredo para a edificação de habitações de interesse social. Em 2012, o Programa Nossa Casa, do governo estadual, entregou 400 casas no bairro.
A formação do bairro João Goulart retrata o problema da regularização fundiária na região. Originalmente, sua área pertencia a proprietários com residência em Minas Gerais e Rio de Janeiro e, ainda, à Prefeitura de Vila Velha. Era chamado Loteamento Castanheiras, aprovado na prefeitura nos anos 60.
A desapropriação que originou Residencial Jabaeté de certa forma também engendrou João Goulart. O governo desmembrou uma área de 20 hectares para doar à prefeitura. A ideia era destiná-la a famílias que habitavam área de risco na Ilha da Jussara. Uma ocupação com 168 famílias no terreno de Jabaeté no entanto acelerou o processo: o movimento foi barrado pelo Estado na Justiça e, com a aprovação da prefeitura, as famílias foram reencaminhadas para a área de 20 hectares ao lado. Corriam os primeiros anos da década de 90. João Goulart começava a nascer.
Mas divergências internas corroem o movimento de ocupação. Um grupo defende o assentamento via parceria com o poder público, que poderia fazer daquela uma área de interesse social e desenvolvê-la planejadamente; outra vê no expediente uma ameaça a um bom negócio: a venda e doação de lotes ilegais e clandestinos – lembrem-se, se trata de uma área doada pelo governo à prefeitura.
Este último grupo e seus interesses parecem ter prevalecido, uma vez que nenhuma área foi destinada à instalação de equipamentos públicos e ainda hoje é tarefa dura encontrar terreno para tais fins. Os quase 2.400 habitantes (IBGE,2010) de João Goulart não possuem escolas públicas, unidade de saúde ou Centro de Referência de Assistência Social (Cras), efeito claro da ocupação desordenada. Os problemas de pavimentação, drenagem e esgotamento sanitário são evidentes.
Falar em posse de terra na Grande Terra Vermelha é falar em tensão. Os loteamentos criados e aprovados entre os anos 50 e 70 não receberam investimentos em infraestrutura. Permaneceram praticamente abandonados, não fosse a presença de algumas poucas famílias. O déficit habitacional dos anos 80 provocou movimentos de ocupação por famílias oriundas de áreas de risco da Grande Vitória em busca de outras, mais dignas, para assentar a vida. O que não faltava na Grande Terra Vermelha de então eram loteamentos desocupados.
As contendas judiciais em função da posse de terras ainda compõem a história da região. O trabalho de Fernando registra que, ainda hoje, indivíduos aparecem para requerer terrenos onde famílias moram há pelo menos uma década. Há registro de imobiliárias que invadem terrenos alheios para agregar mais lotes. Há relatos ainda de prática de grilagem em terras e lotes. A disputa por terra ainda engrossa os índices de violência da região.
Um dos tipos de solo que a Grande Terra Vermelha apresenta é conhecido como gley húmico, característico de áreas de brejo. Em outros locais, o solo é composto de tufa e batinga. Em ambos os casos, a ocupação humana deveria ser desautorizada, pois em um é passível de alagamentos e em outro a base é frágil para a edificação de moradias – razão pela qual em muitos bairros casas caem ou apresentam avarias. Ainda assim o poder público aprovou a criação de loteamentos e, ainda, promoveu a ocupação da região.
As chuvas mais severas revelam o problema de drenagem, fruto do aterramento ou de maus-tratos aos córregos que cruzam toda a região. Eles operam a drenagem pluvial e de esgoto. Claro, ficam sobrecarregados pelo lixo, pela erradicação da vegetação ciliar e pela falta de dragagem. A poluição da Lagoa Jabaeté é outro grave problema ambiental da região.
A Grande Terra Vermelha é composta de 12 bairros: 23 de Maio, Barramares, Terra Vermelha, Cidade da Barra, João Goulart, Morada da Barra, Normília da Cunha, Riviera da Barra, São Conrado, Residencial Jabaeté, Terra Vermelha, Ulisses Guimarães.
O Censo-2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontava 29 mil habitantes na região. O Censo-2010 registra 43.467 mil. Barramares e Ulisses Guimarães concentram 45% da população.
Segundo o relatório do IJSN, a Grande Terra Vermelha é jovem e feminina. A média de idade é de 24,7 anos – em Morada da Barra e João Goulart é média é de 22,7 e 22,8 anos, respectivamente. As mulheres são 50,72% dos habitantes – em Terra Vermelha, são 52,20%.
Há oito unidades municipais de ensino fundamental – Cidade da Barra, São Conrado, duas em Ulisses Guimarães, duas em Morada da Barra e duas em Terra Vermelha – quatro de ensino infantil – Morada da Barra, Terra Vermelha, Barramares, Ulisses Guimarães – uma escola estadual de ensino fundamental e médio – Terra Vermelha – e uma estadual de ensino médio – Residencial Jabaeté. Há um déficit claro de unidades de ensino médio na região.
O documento do IJSN fornece um elemento sintomático: das 12 escolas da região à época da publicação do relatório, mais de 80% ostentava muros com mais de dois metros de altura. Foi o expediente encontrado para evitar que traficantes invadissem o local – pulando o muro – para aliciamento de estudantes. Grades em janelas e vigias estão presentes na maioria das escolas.
Cerca de 60% das escolas registram problemas nas instalações elétricas e 42% nas hidráulicas. Não há biblioteca em 25% e em 16% as condições são precárias. Em mais de 30% os espaços de recreação são precários ou inexistentes. Outro dado sintomático: em todas há TV e computador e a maioria (66%) possui data-show em boas condições.
Há três Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS), em Terra Vermelha, Barramares e Ulisses Guimarães; e duas unidades do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), em São Conrado e Morada da Barra. O relatório do ISJN destaca que o cenário das unidades de saúde, além de apresentarem um entorno de insatisfatória infraestrutura urbanística, é marcado por tiroteios e presença de “bocas de fumo”, o que dá insegurança a usuários e funcionários.
Entre praças, campo de futebol e quadras esportivas, a Grande Terra Vermelha conta com quatro praças, quatro campos de futebol e uma quadra esportiva. Em 55,6% não há calçamento da entrada principal e, em 11,1%, o calçamento é mal conservado.
Apesar disso – e da iluminação, limpeza e arborização precárias, dos equipamentos avariados, das cercas quebradas – em 66,7% registrou-se um nível de “muita utilização” por crianças e jovens (numa faixa etária de 0 a 24 anos) no período vespertino e em fim de semana.