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Reportagem especialO mal do flúor

Texto: Henrique Alves
Fotos: Apoenas Medeiros/Agência Porã
 
“Francisco, extrai esse dente aqui pra mim”. Os dentes do rapaz até apresentavam boas condições. Mas um chamou a atenção do jovem Bebeto; o esmalte apresentava uma mancha levemente acinzentada. O molar perfurara a furca e não queria sair de jeito nenhum. Bebeto solicitou o então professor da Faculdade de Odontologia, Francisco de Oliveira, que chegou mergulhando o fórceps na boca do menino. Voou dente para todo lado. 
 
Em meados dos anos 60, o dentista Roberto Ruschi trabalhava em um centro de saúde em Porto de Santana, Cariacica, quando o então secretário estadual de Saúde, Hamilton Machado, o convidou a tomar parte num nobre projeto: integrar grupos de dentistas que iam aplicar flúor em alunos de escolas públicas de Vitória.
 
Bebeto fez um curso de quatro meses no Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), hoje Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Ao final, foram criadas equipes de seis dentistas. No quarto dia de trabalho, estava Bebeto examinando a ficha de um dos alunos – Nome, Endereço, Data de Nascimento – quando seus pequenos olhos azuis bateram em Local. “É agora”, exclamou. O paciente, aquele mesmo, lá de cima, nascera em Baixo Guandu.
 
      
 
No dente guanduense, o fluoreto vitrificou o molar e soldou o osso. Desse caso em diante, Bebeto passaria a examinar mais detidamente as dentições oriundas da primeira cidade brasileira a receber água tratada com flúor.

Foi no município do noroeste capixaba que a fluoretação da água de abastecimento público como estratégia de odontologia preventiva começou no Brasil. Era 1953. Oito anos antes o método estreara em escala mundial na cidade de Grand Rapids, Michigan (Estados Unidos). O objetivo era combater a cárie, sobretudo entre as crianças.

 
Anos antes, um levantamento odontológico apontara um índice assustador de cárie dental nas bocas guanduenses. O fato que pesou sobremaneira na escolha do município para a implantação do método, realizada pelo Sesp. Quartoze anos depois, um estudo registrou uma queda de cárie dental de 65% nas crianças entre 6 e 12 anos.
 
Nos Estados Unidos, as contendas em torno dos fluoretos fizeram com que mais de 200 municípios norte-americanos se posicionasse contra a fluoretação da água, já que não há consenso acerca de seus benefícios. 
 
Ano passado, a Funasa lançou o Manual de Fluoretação da Água para Consumo Humano, em que registra “A fluoretação da água para consumo humano é uma medida preventiva de comprovada eficácia, que reduz a prevalência de cárie dental entre 50% e 65% em populações sob exposição contínua desde o nascimento, por um período de aproximadamente dez anos de ingestão da dose ótima”.
 
Formado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em 1959, Bebeto Ruschi é hoje um senhor de 77 anos, olhos azuis e cabelos grisalhos de fios lisos e delicados penteados para o lado, sem qualquer sinal de calvície ou, mesmo, entradas. É sobrinho de Augusto Ruschi. O pai, Enrico Ruschi, irmão do naturalista, foi prefeito de Santa Teresa nos anos 30. 
 
Bebeto pendurou os boticões em 2007. Passou 36 anos pesquisando a ação do flúor na saúde humana. Para ele, não há benefícios. Jogue no Google as palavras “flúor” e “polêmica”. Desde os anos 50, comunidades científicas no mundo inteiro se engalfinham em altercações acerca dos fluoretos – compostos que contêm o flúor – e seus impactos no organismo humano.
 
Quando se deparou com o caso do molar, Bebeto sabia da ação pioneira em Baixo Guandu. Os impactos, no entanto, do flúor ainda lhe eram imprecisos. Isso mudaria radicalmente em 1966, num congresso em Vitória organizado por Eloy Borgo. 
 
Um cientista norte-americano da Universidade de Harvard ministrou a palestra de encerramento do congresso, que debateria justamente o flúor. “Eu estava sentando e um cara passou por mim. Lembro como se fosse hoje, uma calça cor de rosa, um paletó azul, cabelo branco, desgrenhado”.
 
O acadêmico mete a mão no bolso. Quando tira, um dente de baleia se revela entre seus dedos. Ele se dirige a Aprígio Freire, então diretor do Sesp, e, logo, respeitado defensor da fluoretação, e dispara a dúvida: “se o mar é a maior fonte de flúor, eu queria saber por que essa baleia tem uma cárie”. Constrangimento geral. 
 
 “Quando a gente é pequeno, nos ensinam que cárie é um bichinho que roi o dente. Não é coisa nenhuma. São as fezes de uma bactéria que são ácidas e provocam a cárie. Então, não há necessidade de flúor: o dente tem a estrutura do esmalte comparável ao diamante”, defende Bebeto. A mancha branca, ele diz, é causada por via endógena: você executa a escovação, o flúor entra, vai para a corrente sanguínea e daí para o dente. 
 
Sobre a mesa, vemos um canino com raiz entortada. “O dia que tirei esse dente, eu ganhei um carro na rifa”, ri-se. Na faculdade, não conseguiram tirar e solicitaram sua ajuda. Ele explica que é um atravessado ao contrário: a ponta da raiz fica geralmente para trás, mas, ali, ela projetava-se para frente. 
 
                              

O caso é exemplar e foi uma das primeiras coisas que o cientista norte-americano salientou. 

 
O fluoreto apresenta a capacidade de vedar a passagem do líquido senovial, um gel viscoso encontrado no interior dos ossos, cuja função é lubrificar a cartilagem. A falta de lubrificação provoca o enrijecimento ósseo. 
 
O resultado são essas deformações inusitadas, os dentes encontrando dificuldade para erupção, e a dureza cada vez maior para extração de sisos. “Se o siso, naquele tempo, era difícil para tirar, imagina agora…”, recorda.
 
Ao lado da grande e pesada porta de macanaíba da bela casa de dois andares na Mata da Praia, um aviso está pregado na parede: “Aqui mora um tricolor feliz”. Abaixo, o escudo do Fluminense. Bebeto ama futebol. 
 
Com 14, 15 anos, “quando o futebol de Vitória era bom”, ele lembra que os grandes clubes vinham à capital enfrentar os capixabas. Às vezes, rolava uma pelada num campo qualquer e lá estava Bebeto, jogando bola com mitos, aquelas criaturas sobre-humanas das crônicas esportivas de Nelson Rodrigues.
 
Um a um, vai falando com quem jogou. Da sua boca, parece que saem nomes não de homens comuns, mas de gênios da humanidade. “Joguei com Castilho, Orlando, Pinheiro, Zizinho, Rubens (‘que eu nunca vi jogador igual, e nem falam mais nele. Um espetáculo!’), Biguá, Jaime…”. 
 
Ele garante que naquele tempo nunca viu jogador reclamar de ligamento cruzado ou panturrilha – aqui, evoca os martírios de Fred, o centroavante tricolor que de vez quando pena com problemas naquela região. 
 

Lembra ainda a icônica e chocante imagem flagrando a ruptura do ligamento cruzado de Ronaldo Fenômeno, então defendendo a Internazionale de Milão. Cartilagem ressecada. “O cientista falou que ia aprecer isso tudo, ligamento cruzado, panturrilha, fratura do fêmur”, diz.

 
O fluoreto não está presente apenas na água tratada, está também em alimentos, bebidas e produtos de higiene bucal. Fica difícil medir nossa ingestão diária. Bebeto indica uma saída: evitar as pastas de dente com flúor. Só é preciso uma lupa para se orientar entre as letrinhas do tubo e verificar os componentes.

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