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Reportagem especialO vandalismo é o quê?

Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
Segunda-feira (24). Às 17h40, o trânsito na Rua Clóvis Machado, na Enseada do Suá, em Vitória, fluía com tranquilidade. Os carros que vinham de ambos os sentidos da Avenida Nossa Senhora dos Navegantes deslizavam desimpedidamente por esse último trecho de rua antes da Terceira Ponte. Em certos momentos contava-se um ou dois entre a saída da avenida e a praça do pedágio.  
 
Uma semana antes, à mesma hora, o panorama seria diametralmente outro. Retenções desde a Nossa Senhora dos Navegantes. Uma confusão de carros espremidos ao longo das três faixas da Clóvis Machado. Fluxo lento. Impaciência. 
 
Um pedágio gratuito faz coisas incríveis. Pela manhã, os interesses (privados) da Rodosol até tentaram prevalecer sobre os interesses (públicos) do resto da Grande Vitória. Felizmente, isso é raro, a Rodosol se deu mal. O caos abateu-se e – oba! – cancelas liberadas. Ponto para a mobilidade urbana. 
 
Às 18h, cerca de 200 pessoas se concentravam na Praça do Papa para um ato mais específico em relação ao “oceano de desejos” que parou o Brasil quatro dias antes: um ato contra o pedágio da Terceira Ponte. Nas rodinhas informais de bate-papo, o que mais se ouvia é que “a Terceira Ponte já está paga há muito tempo”. 
 
 
Exemplo: a mulher que entrevistei já na praça do pedágio, saudando os carros que seguiam no sentido Vila Velha. “Essa ponte já foi paga desde que a minha filha nasceu. E ela já está com 30 anos”, disse. A mulher não solicitou a preservação de identidade, mas como os entrevistados geralmente o faziam – talvez por efeito da característica horizontalizada dos movimentos Brasil afora – não identificaremos ninguém.
 
18h30. A passeata saiu. Trajeto: Nossa Senhora dos Navegantes, rua do Corpo de Bombeiros, Terceira Ponte. Muitos jovens, algumas senhoras, senhores e crianças, alguns envoltos na bandeira do Brasil. Teve “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amo-ô”, mas não teve Hino Nacional.
 
As palavras de ordem refletiram bem e com bom humor o tema do ato:
 
– Ô, Casagrande, cê não me engana, a Rodosol financia sua campanha
– Ô, Casagrande, mas que vergonha, a Rodosol financia sua campanha
– Hoje é de graça, pode passar, esse pedágio tá na hora de acabar
– Sai do chão, sai do chão, contra a privatização
 
Interessante notar que falou-se em “privatização”, mesmo sendo a Terceira Ponte administrada via concessão. Vai ver que, no imaginário popular, a relação público-privado no caso Rodosol atingiu um nível tão degradante que não há diferença entre os “-ãos”. É tudo igual. Mas, claro, em detrimento do público. 
 
Havia poucos cartazes. Um deles era empunhado por um estudante de Administração de 18 anos com palavras que condenavam o pedágio. Morador de Vitória, não é usuário regular da ponte. Mas o pai é. Representante comercial, viaja com frequência para o sul do estado e, logo, pega a Terceira Ponte no caminho. Por isso deu apoio incondicional à presença do filho na manifestação.
 
19h. A manifestação toma a ponte e a Tropa de Choque se enfileira na descida (sentido Vitória) impedindo o trânsito. No sentido contrário, fluxo liberado, carros e motos demonstram adesão efusiva à manifestação, cruzando o pedágio devagar, buzinando alto, fazendo joinha. Boa parte deve ser cliente regular da Rodosol. 
 

Uma das manifestantes que saúdam os carros veste camisa do Brasil e mora em Vitória. A relação dela com o pedágio doi no bolso e na alma: são R$ 12 por dia. Têm cinco filhos, que estudam em Vila Velha (tarde) e fazem atividades esportivas no município (manhã). São quatro viagens/dia levando e trazendo os filhotes. A Rodosol lhe abocanha R$ 240/mês.

 
Às 20h30 a manifestação, que ao todo contou com cerca de 500 pessoas, se enfraquecia. Alguém diz ao microfone do carro de som: “O objetivo de hoje já foi atingido. Todos aqui merecem uma salva de palmas”.
 
Quarta-feira (26). Alô, alô, marciano. Mesmo ante questionamentos consistentes ao contrato da Rodosol – partindo da sociedade civil, do Ministério Público Estadual (MPES), da Assembleia Legislativa e de um ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado – o governador Renato Casagrande saiu em defesa da concessionária em entrevista ao jornal A Gazeta. Disse que governo que rompe contrato perde a credibilidade.
 
O MPES promete pedir uma auditoria no contrato. O deputado estadual Euclério Sampaio (PDT) anunciou nessa quarta-feira (26) já obteve seis assinaturas para a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que pede o fim da cobrança do pedágio da ponte.
 
O advogado e ex-conselheiro Enivaldo dos Anjos entrou com recurso contra a decisão judicial que extinguiu uma ação popular contra a Rodosol, requerendo a nulidade da cláusula que desobriga a concessionária de garantir um padrão mínimo de qualidade no serviço.
 
Quinta-feira (26). Mais alto: alô, alô, marciano. Estudiosos do Brasil inteiro se debruçam sobre o terremoto popular que sacoleja o país e o governador Renato Casagrande, em mais uma declaração, mostra uma melancólica falta de sintonia com o movimento ao pedir uma “trégua” aos manifestantes. 
 
Ao mesmo tempo, o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Edmilson dos Santos, e o secretário estadual de Segurança Pública André Garcia arquitetam um “discurso do medo” para desmobilizar a manifestação do dia seguinte. Ai, que preguiça.
 
Sexta-feira (27). Às 18h30, o protesto saiu e não foi para gritar vagamente por “saúde e educação”. As mobilizações realizadas desde a quinta-dos-cem-mil parecem mais focadas em demandas específicas. Ok, cartazes ao estilo “contra a corrupção” ou “#ogiganteacordou” ainda subsistem. 
 

Viam-se demandas especificamente capixabas vindo mais à tona. O risco aos nossos pulmões chamado oitava usina da Vale estava representado; a instalação de mais portos pelo litoral capixaba, idem. 

 
“Esse cartaz é um dos pontos que os estudantes da Ufes [Universidade Federal do Estado] levantaram em reunião no final da semana passada. A CPI do Pó Preto é um dos itens para mudar a realidade da Grande Vitória. O que a gente vê são as grande indústrias investindo fortunas em políticos para depois receber de volta com correção monetária. É um investimento”. 
 
As palavras acima é do professor de Matemática da Ufes Fábio Dutra. Sozinho, carregava um cartaz associando a Vale e a ArcellorMittal ao fracasso da CPI do Pó Preto na Assembleia Legislativa. 
 
Estava sozinho, mas não solitário. Às 18h, em frente às escadarias do Teatro Universitário, na Ufes, a Associação dos Amigos da Praia de Camburi (AAPC), a SOS Espírito Santo – Ambiental e a Associação Nacional dos Amigos do Meio Ambiente (Anama), entidades ambientais civis, exibiam grandes faixas.
 
Algumas alertavam para a degradação da Praia de Camburi, outra condenava a licença para a oitava usina da Vale, e uma última chamava a atenção para as graves ameaças ao meio ambiente que representam a instalação de portos no estado. 
 

A entidades ambientais se juntaram às cerca de seis mil pessoas que saíram da Ufes e seguiram para a Rede Gazeta, em Bento Ferreira. A maior parte, jovens estudantes; poucos pais e mães com suas crianças; muitos bicicleteiros; com faixas, o Sindicato dos Bancários do Estado (Sindibancários-ES) e o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil (Sintraconst-ES) estavam presentes.

 
Não houve trégua, como rogou Casagrande, nem houve medo, como queriam o comandante e o secretário de Segurança. No entanto era possível sentir um certo clima de ressaca no ar, nas ruas e nos ônibus. Era sexta, dia em que estamos ansiosos para chegar em casa. Nesse dia, as pessoas pareciam mais ansiosas que de costume. 
 
Interessante é que, neste dia, os manifestantes não demonstraram receio em se identificar. 
 
O estudante de Arquitetura da Ufes, Rafael Potratz, que mora em Goiabeiras, Vitória, e vai estudar de bicicleta todos os dias, empunhava um cartaz que dirigia uma interessantíssima questão a Casagrande: desde quando a duplicação da Fernando Ferrari significa mobilidade urbana?
 
“Essa duplicação da Fernando Ferrari é um absurdo, assim como são todas as obras de grande porte que fizeram aqui na Grande Vitória”, critica.  Para ele, mobilidade urbana não significa apenas alargamento de avenidas. Como graduando em Arquitetura, ele reforça a opinião que especialistas se cansam de repetir: alargamento de avenidas só privilegia o transporte privado, ou seja, os carros.
 
“Acho que, em questão de mobilidade urbana, você tem que ter vários modais. Um transporte de qualidade, ciclovias e outras possibilidades para a galera se locomover”, pondera. 
 
O grito “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amo-ô” foi raras vezes entoado. As palavras de ordem refletiram o tom da manifestação, criticando a violência oficial, o pedágio da Terceira Ponte e o trágico transporte público capixaba:
 
– Eu não acho, mas Casagrande acha, que o povo precisa de bala de borracha
– O vandalismo é o quê? Pedágio! O vandalismo o quê que é? Pedágio!
– Chega de tarifa e de político babaca, a gente tá lutando por uma vida sem catraca
 
Integrante do Construa, coletivo que reúne estudantes de diversos cursos da Ufes e que propõe formular um movimento estudantil “autônomo e combativo”, o estudantes de Ciências Sociais Vinicius Fernandes explica por que o coletiva carregava uma grande faixa com os dizeres “por uma vida sem catraca”:
 
“A gente entende que o transporte público é direito de todo mundo, para você ter acesso à cidade, à saúde, à educação, você precisa se locomover na cidade. E com direito não se lucra. Somos contra as empresas que nos exploram com tarifas abusivas. Então a gente está nessa luta por um ônibus sem catraca e sem pedágio na Rodosol também”, disse.
 
A passeata terminou em frente à Rede Gazeta, com os manifestantes dirigindo palavras de ordem contra a afiliada da Rede Globo no Espírito Santo. Os rojões que começaram a espocar no meio da multidão dispersou o movimento. Mas, como costumam dizer, o objetivo foi atingido. A Rodosol, a Vale, a ArcellorMittal, os empresários do transporte público e o governador Renato Casagrande não são surdos. A rua está vivíssima. 
 
Domingo (30). O pedágio da Rodosol voltou a operar. Às 0h05, no sentido Vila Velha, acreditem, havia fila de carros. E não de dois ou três. 

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