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Rotativo da Prefeitura de Vitória forma ‘ilha carrocrata’ e garante privilégios na Cidade Alta

As boas intenções do prefeito Luciano Rezende (PPS) de democratizar o espaço público com a implantação do sistema de estacionamento rotativo em Vitória não subiram as ladeiras e escadarias do Centro. Sintomaticamente, a democratização negociou em detrimento próprio com um sistema bem consolidado, embora informal, de privilégios no uso das ruas da Cidade Alta, polo palpitante do Judiciário capixaba.
 
O mapa de instalação do rotativo na região é eloquente nesse sentido. Agraciadas com o sistema, as ruas Dionísio Rosendo, Professor Baltazar, Dr. Azambuja e Duque de Caxias/Nestor Gomes são justamente vias de acesso ou saída da Cidade Alta. Elas destacam uma espécie de “ilha carrocrata” claramente demarcada pelas ruas José Marcelino, Professor Baltazar (trecho Catedral de Vitória), Muniz Freire, Pedro Palácios e pelo Palácio Anchieta. 
 

Se você estaciona um metro para cá, a democracia funciona; um metro para lá, a democracia vacila. Como em qualquer cidade com estacionamento gratuito, motoristas e guardadores de carro são os dois grupos de agentes sociais que se complementam e estabelecem as regras do funcionamento interno do local. 

 
No caso da Cidade Alta, de um lado doutores e doutoras de preto ou branco, moradores e outros usuários de freqüência irregular compartilham nessa “ilha” algo entre 200 e 250 vagas de estacionamento, segundo levantamento informal realizado pela própria reportagem. 
 
Afora o judiciário, com os fóruns cível e criminal, o Hospital da Associação dos Funcionários Públicos do Estado do Espírito Santo reúne outro segmento socialmente atuante. Moradores do lugar, como em geral todos os moradores cujas ruas são eleitas para receber rotativo, são um terceiro estrato. No Centro como em qualquer outro local com prédios antigos, moradores costumam ter mais carros que vagas de garagem.
 
O outro lado é composto por cerca de 15 a 20 guardadores com 20 a 30 anos de trabalho na região administram as mesmas 200 a 250 vagas com a tolerância, aceitação e legitimação do primeiro grupo. 
 
O rotativo também opera nas ruas Gama Rosa, General Osório, Thiers Veloso, Barão de Itapemirim, Coutinho Mascarenhas, Graciano Neves, do Rosário e Sete, além no das praças Costa Pereira e Ubaldo Ramalhete. Funciona de segunda a sexta, das 8h às 18h, e aos sábados, das 8h às 14h, ao custo de R$ 1 (30 minutos), R$ 1,50 (uma hora), R$ 2 (duas horas) e R$ 3 (três horas). São 375 vagas integradas ao sistema.
 
Mas nem tudo são espinhos nessa história. A chegada do rotativo no Centro engendrou uma situação mui singular. O caso é que a implantação do sistema lá embaixo desestabilizou a velha cumplicidade entre motoristas e guardadores, uma espécie de contrato tacitamente firmado entre uns e outros para contornar de forma mais cômoda e eficiente as pequenas e tão brasileiras infrações do dia a dia – no caso em questão fruto do excesso de carros ou da escassez de vagas.
 

Às 11h30 da última quinta-feira (6), na Pedro Palácios, agentes da Guarda Municipal de Trânsito verificavam uma caminhonete estacionada em local irregular, em frente à garagem do prédio vizinho à Praça João Clímaco. Os agentes ficaram a observar o veículo, como se certificando da violação de trânsito. Enquanto isso, um dos guardadores se dirigia discretamente ao Fiesta vermelho que também obstruía a garagem do prédio. Ligou o carro e saiu sem alarde. 

 
Uma confusão que se armou em frente às lanchonetes ao lado da Escadaria Maria Ortiz – uma mulher gritando, curiosos se amontoando em torno – chamou a atenção dos guardas, que foram averiguar o ocorrido. Sorte da caminhonete, que também se safou: o dono apareceu, não se sabe de onde, mas apareceu.
 
Mais adiante, pouco depois um reluzente carrão prata tipo sedã virou a Professor Baltazar e pegou a José Marcelino. Parou. Não havia vaga em nenhum dos dois lados da rua. “Doutora!”, gritou o guardador, pedindo que ela esperasse. Saiu um carro dali, saiu outro acolá em frete à garagem do hospital, o guardador fazendo as vezes de guarda de trânsito pedindo ao motorista que deixava a garagem do prédio vizinho para aguardar um pouco aquele encaixe e desencaixe de peças. Pronto. A vaga surgiu. A motorista e seu jaleco branco finalmente deixaram o sedã. 
 
As irregularidades de trânsito são uma constante na região, sobretudo na Pedro Palácios, endereço do fórum criminal. Carro estacionado em local proibido, em frente a garagens ou foram das faixas demarcadas para estacionamento, são as violações mais, digamos, regulares. São infrações de certo modo socialmente toleradas na região, pelo menos até a próxima ronda da guarda de trânsito.
 
O silencioso acordo entre motoristas e flanelinhas para a preservação dos privilégios dos primeiros estabelece claramente um vínculo entre um e outro. E não aquele vínculo frio e impessoal. O primeiro indício são os volumosos molhos de chaves que os guardadores levam nos bolsos para lá e para cá. Outro: muitos carros costumam ficar de portas destravadas – mesmo os de grife. 
 
No entanto, o que confere solidez a esse elo de confiança não é apenas o ato de abandonar as chaves e a segurança de um bem tão valioso quanto um carro ao bolso do guardador. A confiança é construída também nas palavras afáveis e cumprimentos alegres que se dão a cada encontro de segunda a sexta. 
 
O doutor ou a doutora não chega, sai do carro, entrega a chave e vira as costas. Todo esse ritual é entremeado de uma troca de palavra leves; falam amenidades entre si; comentam um fato corriqueiro; sorriem. Os guardadores da Cidade Alta não gozam da péssima reputação de que gozam seus semelhantes no resto da cidade.
 
Só que, agora, nesta era pós-parquímetro, agentes do comércio da “cidade baixa” que, habituados com a gratuidade, costumavam largar o carro na rua o resto do dia antes do, agora disputam vagas de estacionamento na Cidade Alta para não meter a mão no bolso. Anda tudo na base do “leva quem chegar mais cedo”. Ou seja: ninguém afirma explicitamente, mas o que se observa é que forasteiros abalaram uma ordem há muito consolidada para a manutenção das regalias de uma casta específica de motoristas. 
 
De modo geral, poupar a Cidade Alta das ações de democratização do espaço público degradou a vida na região. Ruas que já não absorvem o fluxo cotidiano estão ainda mais pressionadas por carros que fogem do rotativo da “cidade baixa”. 
 
Na tarde dessa quinta, os carros tomavam as ruas que formam a ilha da Cidade Alta. Ainda que mais distantes, a Cosme Rolim e a Comandante Duarte Carneiro também estavam dominadas por carros. Quem trafega pela região não percebeu incremento das rondas da guarda de trânsito.  
 
Uma cena em especial chamou atenção na Dr. Azambuja. A funcionária do rotativo já multava um Celta branco estacionado ao lado da Capela Santa Luzia. O motorista chegou desesperado. Tentou contemporizar: só tinha dado um pulo rápido na padaria ao lado. Vendo a mulher irredutível, curvou o rosto, fixou desconsolado o chão, coçou a cabeça. 
 
O jeitinho ali não funciona. Tivesse estacionado um pouquinho adiante, a José Marcelino estava a módicos dois metros, aí, sim, o jeitinho seria a melhor estratégia. Fica a lição.

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