Em ato emocionante, mais de 500 pessoas pararam a Avenida Dante Michelini para homenagear ciclista atropelada
Por duas horas e meia, a avenida mais veloz da cidade parou. Na altura do Clube dos Oficiais, a Avenida Dante Michelini foi interrompida por cerca de 500 pessoas e mais de uma centena de bicicletas. Naquele mesmo lugar, foi atropelada na última sexta-feira (15) a jovem Luisa Lopes, de 24 anos. Estudante, modelo, performer, passista. A Luisa de muito movimento, de muitos movimentos. Gostava de dança, bicicleta, patins. Movimentos interrompidos por um trânsito agressivo.
“O trânsito é feito de pessoas. Respeite a vida”, diz o jaleco do projeto Bike Anjo, vestido por alguns cicloativistas presentes. Enquanto leio, os gritos por justiça do ato seguem simultaneamente ao ruído das buzinas dos automóveis paralisados pelo ato. “Chega de morte/Não aguento mais/Nossa Luiza não vale 3 mil reais”, é um dos coros entoados, em referência ao valor da fiança paga pela motorista, Adriana Felisberto Pereira, que em vídeo após o ocorrido apresentava sinais de embriaguez.
Não fosse ela a vítima, Luisa estaria ali, protestando por justiça, confirma sem hesitar sua mãe, Adriani Silva. “Ela sempre foi muito empoderada e lutou pela causa, qualquer causa que fosse justa. A gente fortaleceu esse ato por causa dela, por causa disso também. Ela sempre estava em algum movimento. Ficava revoltada com a injustiça, com a falta de humanidade das pessoas. Ela era muito afetiva”. Não tem nada mais frágil e forte no planeta que uma mãe que perdeu um filho ou uma filha de uma maneira que poderia ser evitada. Ofereço meu abraço sincero. Sei que é pouco. Sei que 500 abraços são pouco. Mas devem confortar ao menos um pouco.
Foram muitos os grupos e pessoas que se mobilizaram. O ato contou com cortejo de bicicleta desde a Universidade Federal do Estado (Ufes), onde a jovem estudava Oceanografia, até o local do incidente. Bateria de carnaval, capoeira, dança, todos projetos dos quais Luisa participava de alguma maneira.
Nesse momento tão difícil, Adriani e Ivan, mãe e pai, não estão sozinhos. Dentre as centenas de presentes, estão outros pais que partilham uma dor parecida. Perderam seus filhos para violência do trânsito. Muitos levam nas camisas o rosto de seus entes perdidos, com mensagens de saudades e luta por justiça. Os parentes de Luisa Lopes levam junto a sua imagem estampa um trecho da canção O Leãozinho, de Caetano Veloso, uma marca muito dela. Leonina, de longos cabelos afro e loiros. “Gosto muito de te ver, leãozinho, caminhando sobre o sol…”, música que toca também no trio elétrico, entre uma fala e outra. Agora, só em fotos, como a que estampa um cartaz no ato, que diz: “Luisa era o amor de muita gente”.
Assim como eram Emerson, Amanda, Rebeca, Ramona, Detinha e outras vítimas ali representadas por seus familiares. Luisa, como Detinha Son, uma das mais brilhantes cicloativistas que a cidade já teve, fazia tudo de bike, como confirmam amigos e familiares. De casa para o trabalho, para a universidade, para o exercício. A mãe lembra que a primeira bicicleta ganhou com 5 ou 6 anos e não mais largou esse gosto, até a última sexta-feira.
Agora, infelizmente, Luisa Lopes ganhou uma bicicleta em homenagem. A décima terceira Ghost Bike (Bicicleta Fantasma), branca e florida, instalada por cicloativistas capixabas no alto de um poste, próximo ao local do incidente que tirou sua vida. “Com esse monumento, esse símbolo, a gente reverencia a memória de Luisa. A gente relembra tudo de bom e de alegre que ela nos ensinou”, diz Hudson Lupi, do Coletivo Pedalamente, que perdeu sua segunda amiga para a violência do trânsito.
A Bicicleta Fantasma, explica o cicloativista, busca homenagear a vida dos ciclistas que se foram e intervir no espaço público, chamando atenção da comunidade do entorno e de quem transita pelos locais com vítimas fatais. “Para cobrar de nossos gestores ações efetivas, porque a gente não aguenta mais. A gente vem, faz, e daqui a pouco tem outra e outra e outra. Isso vem acontecendo há anos. A gente não consegue colocar bicicleta para todo mundo, a gente não dá conta disso, são muitas pessoas, mesmo”, lamenta.
Antes de Luísa Lopes, foram Ronaldo Birro (2013), Danilo Simões (2013), Danilo Alberti (2016), Detinha Son (2016), Luis Fernando (2018), Marcos Bicola (2018), Neuzi Braga (2019), Luis Felgueira (2019), Drovalino Boecker (2019), Willian Richard, Ricardo Duque e Cosme Balbino. Foram lembrados um por um e à leitura do nome de cada um, o público respondia com a palavra “vive”. Ao fim, o nome de Luísa Lopes, ecoado 10 vezes. Seguida dez vezes da palavra “vive”.
Em algum momento, o som do trio elétrico que acompanha a manifestação toca outra música. “Mas chegou o carnaval, e ela não desfilou…”, canta Benito de Paula. Eu chorei. Na avenida eu chorei. O próximo carnaval terá um vazio na escola de samba. “Não tem ninguém que não tá triste na Jucutuquara”, diz a amiga. Vai doer em especial o próximo carnaval. Mas dói todo dia para os mais próximos. Os pais de outras vítimas dizem à frente de todos, de forma muito sincera, a Adriani e Ivan: “a dor não vai passar nunca. A gente tem que aprender a administrar”.
Mas a luta é por justiça. “Espero que esse ato sirva de referência, que seja um marco para que nós possamos lutar com políticas voltadas para a questão do trânsito para as próprias pessoas. No sentido de mais humanidade”, afirma Adriani.
Os familiares de diversas vítimas se reunirão no próximo dia 29 de abril com o senador Fabiano Contarato (PT), delegado de trânsito, para organizar projetos e a luta por melhorias no trânsito. Logo virá mais um Maio Amarelo, movimento no mês para alertar sobre a necessidade de uma relação mais humana no trânsito.
Antes de voltar do ato para escrever essas linhas, cumprimentei e abracei alguns dos mais de 80 amigos em comum que a rede social mostrou que eu tinha com Luisa. Estivemos tão perto. Agora, tão distante, a sinto mais próxima de mim.
Na volta, cruzo a passos normais o sinal na Dante Michelini. São 24 segundos para pedestres. Exatamente o tempo que uma pessoa como eu, com plenas aptidões, precisa para cruzar as duas vias. No meu último passo, a luz vermelha de pedestre pisca. Uma pessoa idosa, ou com dificuldade de mobilidade, acompanhada por uma criança, ou carregando uma bicicleta, não seria capaz de chegar. Tem que correr. Se arriscar.
Após cruzar o sinal, olho para trás. A Avenida Dante Michelini já não é a mesma. No alto do poste, a bike pendurada em tributo a Luisa Lopes. Na faixa de pedestre, numa intervenção feita por mulheres, o desenho de um corpo estendido em vermelho e a frase escrita de forma repetida entre as listras de tinta que sinalizam o asfalto: Justiça por Luisa. Até quando essas mensagens ficarão ali, não sei. O que sei é que nunca mais verei aquele cruzamento do mesmo jeito.