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‘Se tive uma vida antes de ser adotado, eu não me lembro’

Adoção tardia sofre resistências, mas famílias que se formam assim colecionam histórias de acolhimento e amor

A coordenadora administrativa Kathierline Garcia nunca sonhou em ser mãe. Entretanto, há cinco anos, ela “pariu” Jônatas, que tinha 18 anos; e Joases, de 16, depois de uma gestação de cerca de dois anos, que foi o tempo que aguardou para que a Justiça definisse a adoção. Desde então, o Dia Nacional da Adoção, comemorada na última quarta-feira (25 ), tem um sabor especial para essa família, que é um exemplo de adoção tardia, uma prática que ainda encontra resistências. “Se tive uma vida antes de ser adotado, eu não me lembro”, exalta Jônatas, que assim como o irmão, agora tem o sobrenome da mãe.

Karen Marchesi

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) explica que adoção tardia “refere-se à adoção de crianças que já possuem um desenvolvimento parcial em relação à sua autonomia e interação com o mundo”. Embora não exista uma idade mínima formal para designar esse tipo de adoção, “em geral, refere-se a crianças maiores de três anos”.

O órgão destaca que esse perfil, considerado de “crianças maiores”, é um dos mais preteridos por quem deseja adotar, juntamente com o de “crianças pertencentes a grupo de irmãos, com condição especial de saúde e adoção interracial”. Os números comprovam isso. Atualmente, no Espírito Santo, existem 100 crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Desse total, 86 têm mais de quatro anos. Apenas cinco estão entre zero e dois, e nove entre dois e quatro.

A história de Kathierline, Jônatas e Joases começou quando os dois irmãos foram acolhidos por ela em um abrigo no Centro de Vitória, onde trabalhava como educadora social. As crianças, que tinham, respectivamente, 13 e 10 anos, chegaram após uma denúncia feita ao Conselho Tutelar, uma vez que viviam em situação de muita vulnerabilidade na residência de um casal que já tinha três filhos biológicos. 
Karen Marchesi

Como foram parar na casa dessas pessoas, Jônatas afirma que ele e o irmão nunca souberam, pois chegaram lá muito pequenos e nunca foi contada a eles suas próprias histórias. Porém, de uma das partes de sua vida que sabe relatar, Jônatas recorda a receptividade de Kathierline. “Ela estava de plantão quando chegamos. Nos deu roupa, comida. Nos tratou com muito amor e muito carinho”, afirma.

Diante do susto que as crianças transmitiam, segundo Kathierline, a sensação que teve foi da necessidade “de proteger, de cuidar”. O abrigo era de porta de entrada, ou seja, temporário. Como não havia possibilidade de retorno deles para a família, foram encaminhados para um no bairro Bela Vista, em Vitória. Contudo, isso não foi motivo de separação, pois os três continuaram a se ver, como nas atividades da Fundação Fé e Alegria, instituição que gerenciava os dois abrigos.

Quando o abrigo do Centro foi desvinculado da Fundação, Kathierline, que para Jônatas e Joases era a tia Kathi, foi trabalhar na instituição de Bela Vista. Os laços se estreitaram, pois os funcionários do abrigo, onde era feito um trabalho de emancipação e autonomia, buscavam proporcionar às crianças e adolescentes momentos de vivência em suas casas em ocasiões como final de semana, férias e festas de fim de ano.
Com o passar do tempo, Kathierline passou a sentir o desejo de ajudar os dois. “Adoção é desejo de maternidade, e não ajuda. Esse desejo eu nunca tive. Pensei em pegar a guarda até os 18 anos”, recorda. Esse desejo foi comunicado a profissionais do abrigo. Porém, Kathierline recebeu o seguinte questionamento: “quer pegar a guarda até 18 anos e depois segue a vida ou quer adotar?”. “Quando ouvi aquilo caí em prantos e entendi naquele momento que eu estava concebendo os dois”, relata, destacando que não havia ninguém na fila de espera que pleiteasse por adotar crianças com o perfil de Jônatas e Joases. 
Karen Marchesi

A partir daí foram dois anos de gestação, até a audiência que definiu a adoção, considerada como o nascimento dos dois, quando, inclusive, familiares e amigos de Kathierline levaram um cueiro de bebê para cada um. Como Jônatas já tinha 18 anos, ele já estava morando na casa dela, que deixou de ser tia Kathi para ser “mãezita”, “mãezinha” e, finalmente, “mãe”.

A decisão da juíza foi que Joases ficasse ainda no abrigo até terminar o ano letivo. Mas ele demonstrou sua insatisfação para a magistrada, dizendo que era muito tempo para ficar longe dos dois. A juíza falou que passaria rápido, mas o garoto foi categórico e disse “passa logo para a senhora, que não está longe do seu filho”. A atitude fez a magistrada mudar de ideia. Com o tempo, Kathierline, também para Joases, deixou de ser a “tia Kathi” para ser “mãe”.

“Foi em uma ocasião que é algo corriqueiro nas famílias. Ele foi tomar banho e esqueceu a toalha. Aí gritou do banheiro: ‘mãe, traz a toalha!’. Fui entregar chorando”, recorda.

Para Kathierline, a convivência com os filhos proporciona aprendizados diários. “São duas criaturas especiais, fundamentais na minha vida e na da minha família. Parece que nunca existiu um tempo em que eles não estiveram conosco”, ressalta.

Kathierline, como qualquer mãe, sabe as características de cada um dos filhos. Joases, que hoje trabalha como embalador de supermercado, tem um perfil mais “caricato, engraçado, gosta de fazer piada”. “A gente ri muito com ele”, diz. Jônatas, que é universitário, é muito amoroso e busca se superar sempre. Contudo, segundo Kathierline, eles têm uma característica em comum: ambos buscam cuidar da mãe.
Jônatas destaca que “adoção não é caridade”. “As pessoas têm que entender melhor o que é isso e deixar o coração falar. Não olhar para particularidades da criança, como raça”, acredita. Já Kathierline salienta que, “até para os pais biológicos, os filhos têm que ser adotados”. “Para esses pais e mães, o filho também é algo novo. É uma vida nova para sua casa, com quem vai ter que aprender a lidar, criar à sua maneira, incutir valores, saber que aponta os caminhos, mas que as escolhas são deles”. 
Passos para adoção
Pode se disponibilizar para adoção qualquer pessoa acima de 18 anos, independente de gênero, orientação sexual e estado civil, desde que haja diferença de 16 anos entre os pretendentes e a criança ou adolescente. Os interessados devem procurar o Fórum ou Vara da Infância e Juventude da sua comarca de residência para dar entrada no processo de habilitação pra adoção.
Além disso, há visitas domiciliares e entrevistas feitas por assistentes sociais e psicólogos, bem como a participação em um programa preparatório pra adoção. A partir do estudo psicossocial, da certificação de participação em programa de preparação para adoção e do parecer do Ministério Público, o juiz proferirá sua decisão. Com o deferimento do pedido de habilitação à adoção, os dados do postulante são inseridos no sistema nacional, observando-se a ordem cronológica da decisão judicial.
O jornalista Ademar Possebom Pessini Júnior e a professora Bartira Zanotelli Dias da Silva já concluíram o programa preparatório. Eles são pais de Raul Dias da Silva Possebom, de três anos. Agora querem adotar duas crianças entre três e 12 anos. “A gente quer pelo menos uma em idade próxima à do Raul para convivência entre irmãos, e pelo menos uma menina”, destaca Ademar. Entretanto, o casal afirma ter disponibilidade para três crianças.
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“Acreditamos que o processo vai ser rápido, quase ninguém quer adotar irmãos, ainda mais nessa faixa etária”, pontua Ademar. O jornalista e a professora não fizeram restrições como a de cor, somente para crianças com transtornos mentais, não sendo outras doenças um empecilho.

Ademar e Bartira têm encontrado no Grupo de Apoio à Adoção Mãos Amigas (Gaama), da Serra, um grande apoiador na realização desse projeto. O Gaama proporciona uma troca de experiências entre pessoas que querem adotar e aquelas que já estão passando pela experiência. “Foi recomendado pela própria Vara da Infância. Encontramos uma equipe acolhedora, de profissionais voluntários excelentes. É importante, porque os cursos para habilitação são rápidos e há questões antes, durante e depois da adoção”, informa Ademar.

O jornalista destaca que o processo de adoção no Brasil “é sério e seguro, permitindo a preparação para adotar”, com foco no bem-estar infantil, e pensado em “encontrar famílias para as crianças, e não crianças para as famílias”.

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