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???Sentar e escrever, para mim, é o melhor dos mundos???

Fotos: Leonardo Sá/Porã

A mais antiga colunista de Século Diário é tímida e fala pouco – integra a aquela classe dos escribas que preferem escrever a falar.  Não é afetação. Se às vezes as palavras lhe faltam para falar, lhe sobram para escrever, como provam os 15 anos desvelando as miudezas do mundo nas crônicas deste jornal, ou os romances, contos, histórias infanto-juvenis e peças teatrais que criou. Ou, ainda, nos roteiros cinematográficos que vez por outra escreve – seu forte é a literatura, mas, naquele jeito acanhado, as mãos entrelaçadas junto ao joelho, revela que guarda alguns roteiros.  

 
Um, aliás, acabou de sair de seus arquivos para ganhar as telas de cinema. No próximo dia 4, no Cine Metropolis, no campus de Goiabeiras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes),  o diretor Marcos Valério Guimarães lança um curta-metragem com roteiro de Wanda. É a história muito brasileira de incontáveis roubos de um mesmo tênis, desses que a moda celebra e todos desejam. Trata-se da segunda, digamos, incursão de Wanda pela sétima arte. Em 2010, Orlando Bomfim Netto lançou Linhas Paralelas, com roteiro baseado nos contos do livro homônimo de 1994 da escritora. 
 

Embora passeie por quase todos os gêneros literários – exceto a poesia, apesar de, como fala, ter cometido alguns – Wanda navegou mais regularmente pela crônica, seara em que iniciou sua trajetória literária. Uma história tão simples e casual que envergaria perfeitamente o vestuário singelo das crônicas. 

 
Tinha alguns debuxos literários, porém esporádicos e tampouco cultivados. Ela lembra que desde criança em Alegre falava que seria escritora quando crescesse – mas daí a saber o que significava exatamente ser, viver e se estabelecer como escritora, era outro patamar com que a pequena Wanda ainda não lidava. O devaneio infantil, no entanto, o tempo provaria, guardava uma pincelada de verdade.
 
Wanda não lembra quando foi que o marido lhe lançou o desafio. Mas já trocara a pequerrucha Alegre pela Capital Vitória; era mãe, casada, trabalhadora. Um dia, Michel Sily, representante comercial de descendência árabe, os pais libaneses conheceram-se em Cachoeiro de Itapemirim, pegou A Gazeta, abriu e leu uma crônica. 
 
Ficou comovido. “Como as pessoas conseguem fazer isso?”, perguntou, enlevado pelos mistérios da criação humana.  Wanda respondeu: “É fácil, qualquer um faz isso”. o senhor Sily então sacou um desafio: “Então você escreve um pra mim”. Wanda aceitou. Sentou-se e, papel e lápis na mão, honrou o desafio. À revelia da esposa, Michel pegou o texto já datilografado e o levou a Darly Santos, então colunista do jornal. 
 
Dias depois, um domingo, teve a bela surpresa ao abrir o jornal e ver ali à sua frente seu primeiro texto publicado. Assim passou a escrever crônicas para o diário, publicadas no Caderno 2 das edições dominicais. O que chama de “festa dos contribuintes”, ela no meio, foi interrompida com a criação de uma lei que só permitia que jornalistas escrevessem em jornal. 
 
Se antes a literatura não era uma atividade sistemática, passou a ser, sobretudo por força da obrigação e disciplina de entregar toda semana uma crônica para o jornal. E se a criação literária foi de certa forma uma eventualidade, a literatura não era, o que torna a trajetória de Wanda admiravelmente curiosa. 
 
A infância e juventude em Alegre foram desfrutadas entre livros. Nascida em 1938 em Muniz Freire, Wanda era muito pequena quando a família mudou-se para Alegre, por força da promoção do pai, oficial de justiça, de um município para o outro. Viveu a idílica infância interiorana, correndo descalça pelas ruas, subindo em árvores. Mas não desfrutou apenas desses doces clichês da meninice. Hoje vê naquela menina uma figura isolada naquele pequeno pedaço de mundo: era a única pessoa lendo em Alegre.
 
A pequena e a jovem Wanda eram uma leitora voraz em uma família simples da Alegre dos anos 40 e 50. O pai lia apenas jornais. Costumava bravatear que um dia escreveria um livro com as histórias que acompanhava em sua vida judiciária. Mas para tal, dizia em tom de brincadeira, precisava antes que os personagens morressem, caso contrário o autor teria sério problemas. 
 
A filha vivia de livro na mão. Wanda lembra que gostava de subir na mangueira do quintal de casa para ler – até o dia em que o vizinho reclamou que as folhas e as frutas caídas com o balanço dos galhos estavam prejudicando o telhado da sua casa. Também lembra quando havia faxina. Como o costume da época era dispor jornais pelo chão para evitar que a sujeira se espalhasse, era uma luta para Wanda passar entre os jornais, ela queria ler todas aquelas letrinhas esparramadas no chão.
 
A pequena leitora costumava ouvir admoestações do tipo: “Menina, você vai acabar com suas vistas”. Debruçava-se sobre qualquer assunto que lhe despertasse o interesse. Assim esgotou a parca biblioteca municipal. A saída para manter o hábito foi bater à porta dos vizinhos: quando sabia que alguém tinha livros em casa, lá ia ela contar com a boa alma da vizinhança e pedir o livro emprestado. 
 
De certo modo, o pobre patrimônio literário alegrense prejudicou a formação de uma educação literária em Wanda. Em Alegre, lia o que lhe tivesse ao alcance. Até hoje ela diz que não tem educação literária, não têm autores ou títulos preferidos. Ou seja, continua lendo um pouco de tudo, claro que de forma muito mais sistemática. Na última semana estava lendo Joseph Conrad (A Loucura do Almayer) e Fernanda Torres (Fim). Não gostava do Chico Buarque escritor até ler O Irmão Alemão, o romance mais recente do compositor.
 
Os pais de Michel Sily se estabeleceram em épocas diferentes no Espírito Santo. Tiveram 12 filhos Michel nasceu em Castelo, mas conheceu em Alegre a futura esposa: moravam na mesma rua, um de frente para o outro. Casaram-se em 61. Hoje vivem há duas décadas legalmente com três dos quatro filhos em Miami (Estados Unidos) há 20 anos. 
 
Não sentem a solidão de que muitas vezes se lamentam os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos. Levam vida social normal, trabalham de segunda a sexta em uma universidade local, vão a restaurantes, teatros, shows nos fins de semana. Wanda é assistente administrativa após trabalhar por muitos anos com tradução de produções de TV a cabo, atividade que as empresas redirecionaram para o Brasil com a alta do dólar dos últimos anos. 
 
Viveram em inúmeras cidades brasileiras em função do trabalho de Michel, assim como, por igual motivo, conheceram mais de 20 países. Uma vez inaugurada uma trajetória literária, Wanda acompanhava o marido sempre municiada de uma caderneta e lápis bem apontados. Enquanto ele tratava de negócios, ela criava histórias. 
 
Wanda não tem projetos de lançar livros. Após o início em A Gazeta, Wanda descobriu outra atividade estimulante: participar de concursos literários, instrumento que sempre lhe impôs desafios de criação. Ganhou muitos. Seu primeiro livro publicado é fruto de um desses êxitos. Lançado em 1980, Contos Capixabas para as Crianças do Mundo é uma reunião de contos infantis de seis autores, entre eles Milson Henriques, Fernando Tatagiba e Rubinho Gomes. 
 

O curioso é que sua obra mais conhecida arrebatara outro concurso no ano anterior. O Longo Amanhecer Azul foi o grande vencedor do Prêmio Cidade de São Paulo de 1979, da Fundação Francisco Matarazzo Sobrinho, tradicional entidade paulista fundada pelo clã Matarazzo, fundador das Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo, um dos maiores complexos industriais da América Latina no século XX.

 
Qual não foi a sensação que teve quando abriu o telegrama e leu a boa notícia? Um susto e uma satisfação imensa. Já nem se lembrava do concurso, tanta a demora em sair o resultado. Mas a espera valeu a pena: como se tratava de evento de uma entidade de vulto, o êxito de Wanda repercutiu no país inteiro. Deu entrevistas a jornais de norte a sul, na televisão ou nos impressos.  
 
A história é capixabíssima e atualíssima. Wanda bebeu um pouco da fonte do realismo fantástico e se debruçou sobre o Porto de Tubarão e toda a gama simbólica que envolve a atuações dos grandes grupos econômicos, esses seres potentes controlados por deuses invisíveis. O romance foi publicado em 1982, lançado no mesmo ano em São Paulo e Vitória. Por aqui, o lançamento aconteceu na Galeria Homero Massena, no Centro, com exposição vinda de São Paulo de Alfredo Volpi e Pierre Chalita.
 
Entre outras obras, lançou em 94 o livro de contos Linhas Paralelas, ganhador de concurso promovido pela então Aracruz Celulose (hoje Fíbria). Com a peça infantil Xandu, O Palhaço Mais Feliz do Mundo venceu o concurso Claudio Bueno Rocha, do Departamento Estadual de Cultura. Foi encenada no Teatro Carlos Gomes pelo Grupo Movimento, com direção de Renato Saudino. Independente do gênero, sua obra é amarrada por um traço comum: todas trazem a leveza do riso, mesmo quando a história pende para o drama. Wanda diz que não gosta de fazer chorar. 
 
Wanda Sily leu os grandes cronistas, entre os quais, naturalmente, o nosso Rubem Braga, de quem, destaca, leu todos os livros. Mas, diz, sem qualquer traço de afetação, não vê influências imediatas de nenhum autor em seu estilo. Em suas crônicas, transforma suas observações do mundo, da vida, das pessoas, em um texto de estilo próprio, em que não ressoa este ou aquele autor.
 
Não cobre de pompa sua sensibilidade literária. A postura do corpo e a impostação da voz preservam os traços da mulher simples que cresceu em cidade pequena, foi professora antes de se casar porque era o que tinha para as mulheres numa ordem social tradicional como aquela – apesar malfada da sublevação de cursar Contabilidade, logo viu que não nutria gosto por números. Apesar disso, em Vitória, prestou concurso da Secretaria Estadual da Fazenda para fiscal de renda e passou. 
 
A literatura lhe é uma atividade inata, exercida e orientada pelo puro prazer de sentar e criar histórias. Wanda diz: escrever nunca significou sofrimento, martírio, aflição. Além de criar, igualmente lhe apraz apurar o texto, mexer e mudar até alguma coisa lhe dizer que o texto está bom. Tem muito apreço e respeito pelo que produziu, cada crônica, romance, conto, peça, roteiro. 
 
Não pretende lançar livro, sobretudo pelas dificuldades de se editar um morando fora do Brasil: acha o americano receptivo somente para suas próprias produções. O plano é fazer o que sempre fez: enviar histórias para concursos literários. Se ela vai ganhar, não importa; se haverá leitores, também não. O legal mesmo é contar história.

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