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‘Vivemos com medo e estressados. Sabemos que temos que sair daqui’

Família vizinha ao canteiro de obra que cedeu em Jardim Camburi relata transtornos e tremores sofridos há um ano

A verticalização e a gentrificação de áreas mais cobiçadas das cidades, o avanço do agronegócio sobre áreas naturais e terras indígenas, a especulação imobiliária que engole histórias impressas em imóveis que não interessam às grandes construtoras e incorporadoras. Fenômenos distintos, sim, mas com uma raiz comum: a certeza de que os interesses do capital ainda prevalecem, no Brasil do século XXI, sobre os direitos de pessoas e comunidades que, simplesmente, querem continuar vivendo onde e como estão. 

O drama foi muito bem retratado no filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, estrelado por Sonia Braga no papel de uma escritora aposentada que se recusa a vender o apartamento onde viveu a maior parte de sua vida e criou os três filhos, e passa, então, a sofrer ataques diversos por parte da empresa que quer demolir o prédio para a construção de um moderno residencial na orla da praia de Boa Viagem, uma das mais caras do Recife, capital de Pernambuco.

Na película brasileira, premiada em diversos festivais de cinema internacionais, o jovem empreendedor chega a dizer que “a ideia é manter o mesmo nome do edifício que existia aqui nesse lote”, mesmo estando dentro do prédio onde a protagonista ainda mora. “Existia?”, questiona a escritora, constrangendo os empresários ao mostrar a agressividade com que ignoram sua presença e seu direito de continuar no imóvel e já enxergam sua casa no chão.

Nessa terça-feira (21), um exemplo dessa relação conflitante e desigual de poder econômico e político foi marcada por um evento que recebeu a atenção da Defesa Civil municipal e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Espírito Santo (CREA-ES): o canteiro de obras do empreendimento Jardim Heloísa, da Inova Engenharia, cedeu com as chuvas e, com a força do vendaval, foi seguido pelo desabamento de contêineres, tapumes, muro, tijolos e até de caixa d’água, que caíram dentro do buraco que está sendo escavado para servir de fundação do futuro prédio e também sobre a calçada e o asfalto em frente.

Foto Leitor

No imóvel vizinho, o estrondo foi ouvido às três e meia da manhã, assustando os moradores que dormiam, uma idosa e o filho. A outra filha, em viagem, recebeu a notícia e precisou antecipar o retorno para auxiliar a família com as medidas de segurança que julgam ser necessárias para lidar com o medo de novas surpresas. 

“Como o canteiro de obras escavou uma cratera ao lado de nossa casa, ficamos aterrorizados e não conseguimos mais dormir, preocupados com o desabamento do muro e da casa. Fizemos um boletim de atendimento no Corpo de Bombeiros e Policia Militar e na Defesa Civil”, relata Jovan Demoner. Na prefeitura, o morador conta que somente às 8h30 foi possível registrar um pedido de atendimento. Mas, até o momento, somente a Defesa Civil municipal lhes deu algum retorno.

Foto Leitor

Já o proprietário do empreendimento foi acionado pela irmã, ainda em viagem. “Ele só me respondeu às 7h40, dizendo que acionaria a equipe para providências, mas que minha casa não havia sido atingida”, conta Jovana Demoner. 

O desabamento foi somente o mais grave dos problemas já causados pela obra na vida da família, desde abril do ano passado. “Vivemos com medo, estressados e cansados. O dano no emocional é o pior”, suplica a moradora. 

“O primeiro choque foi o corte de árvores com máquina pesada, me lembrou desmatamento. E o barulho constante começou. Sou a mais atingida da vizinhança, por estar ao lado. Em seguida, na fase de estaqueamento, foi um caos e terror. Uma máquina furadeira gigante colada ao meu muro, às vezes trepidando, fez muita sujeira nos telhados e flores e horta da minha mãe. Ela chorava”, relata. 

Nesse período, conta Jovana, a família só conseguia acesso ao empreiteiro e a uma engenheira funcionária da empresa. “Mas eles dependiam do chefe para tomar decisões, o que sempre acontecia depois dos danos, nunca de forma preventiva. Já acionamos a Prefeitura de Vitória e o Ministério Público várias vezes. Mas nenhum setor da PMV nos procurou até agora. Todas as ligações que fizemos para o 156, desde o início da obra, sobre árvores arrancadas dentro e fora do lote, sobre licenças ambientais, Disk-Silêncio, PDU [Plano Diretor Urbano] e licença de obra foram concluídos com a mesma resposta: ‘estiveram no local e todos os documentos estão regulares e dentro das normas'”, narra a moradora. 

Não bastasse o barulho e sujeira, relata, o avançar da obra foi se refletindo em vários pequenos problemas na estrutura física da sua casa. “As portas de vidro arrearam e não fechavam. Paguei prestador de serviço e fui reembolsada. Rachaduras, afastamentos em paredes e pisos, sujeira. Depois de muita reclamação e a gente ter retirado as plantas, colocaram uma lona, mas o material continuou caindo. Fui reembolsada pelo gasto que tive com funcionários que fizeram a limpeza”, elenca.

Foto Leitor

Somente em dezembro passado, complementa, houve uma reunião com o proprietário da obra e advogado, quando foram apresentadas as licenças. Na ocasião, Jovana conta que fez um pedido. “Passei por cima do sofrimento que já tinha acontecido e pedi mais respeito e prevenção com minha casa. Houve comprometimento em abrir canal direto de comunicação e reparação de danos e cuidados futuros”.

Em janeiro e fevereiro, período de grande intensidade de chuvas, a moradora conta que a obra ficou parada. “O buraco [onde está sendo escavada a fundação do prédio] ficava cheio d’água. Quando voltaram em março, Márcio [proprietário do empreendimento] me comunicou da nova fase, de escavação, mas que minha casa estava segura e que todo dano seria reparado”. 

Teve início então o funcionamento de bombas para drenar a água do buraco em escavação, 24 horas por dia. “Reclamei do barulho noturno, acionei o 156, e mais uma vez a prefeitura me diz que está ‘tudo regular’. Parei de dormir no meu quarto, no andar superior”, conta.

Foto Leitor

A família conta com pesar que o impacto acumulado da obra tornou impossível a permanência no local. “Está desumano e arriscado ficar aqui. O proprietário é interessado na compra do meu imóvel e de outros vizinhos. Um consultor de imóveis nos procurou. Depois de digerir que chegou a hora de sair, após 23 anos, dissemos que venderíamos, mas, com prazo de dois anos e com preço justo, desde que os cuidados com nossa residência continuassem a ser considerados”, declara. 

Por parte da Defesa Civil, Jovana conta que recebeu a informação de que não há risco iminente e que um laudo sobre o caso será emitido ainda esta semana. “Mas mesmo com essa fala, de que podemos ficar em casa, nós retiramos o carro da garagem, que ficou na rua, também retiramos freezer e outras coisas da parte da casa próxima ao muro. Dormimos no lado oposto da casa. Não consigo relaxar e confiar nas versões e afirmações”, lamenta.

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