A turminha do funcionalismo gourmet que vive em Downton Abbey
Saiu agora uma reportagem de O Globo meio que sublinhando o que já sabíamos, que é o espírito corporativo e de casta do Poder Judiciário no Brasil. E isto se dá em todas as suas instâncias, incluindo até o Ministério Público, em um caso clássico, no qual a legalidade, por meio de normas infralegais, tais como portarias e etc, serve a uma imoralidade disfarçada, normalizada, em que o teto constitucional de remuneração dos servidores públicos no país é subvertido sistematicamente.
Através de fundamentações casuísticas, para favorecer magistrados que atuam em causa própria, vemos um poder blindado até das reformas administrativas propostas, pois esta casta privilegiada não faz parte da administração direta do Executivo. Eles podem emitir suas próprias regras, para si mesmos, por decisões administrativas interna corporis. Ou seja, ali ninguém irá se prejudicar, muito pelo contrário, e ainda contam com a contribuição de um Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que atua de maneira tíbia e hipócrita diante destes arbítrios perante o orçamento público.
Usa-se de uma miríade de medidas infralegais para dar um verniz de fundamentação jurídica para o que, na realidade concreta, é imoral. O positivismo de Kelsen no Brasil virou algo manobrável ao paroxismo, produzindo jabuticabas ao serviço de nababos de uma casta à parte. Este espírito de corpo de nossa Downton Abbey está repleta de penduricalhos, cevada de indenizações, pagamentos retroativos e licenças compensatórias, sendo fundamentadas por sofismas alimentados pelo despautério, pela desfaçatez e pelo cinismo.
Tais penduricalhos, muitas vezes, aparecem como rubricas que recebem o beneplácito de não serem descontados no Imposto de Renda, este leão feroz para os comuns dos mortais e um tigre de papel diante da muralha brâmane das damas de companhia, mordomos, copeiras, motoristas, cozinheira, métrie, babás, auxiliares de serviços gerais, piscineiros, toda a gama de benefícios para a turminha do funcionalismo gourmet que vive em Downton Abbey.
Diante deste reino mágico de Alice, em que se toma o chá mágico das cinco, o funcionalismo raiz, por exemplo, de professores, em alguns estados da Federação, aguardam reajustes que, ao menos, atualizem valores da inflação, com alguns eternamente alimentando, ainda, esperanças vãs de verbas extraordinárias vindas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e que são efêmeras, passando a carreira inteira num rame-rame, até se aposentar, sem ver nada pingar na moringa.
O corporativismo do Poder Judiciário, com efeito, é reverberado pela instância mais alta, o Supremo Tribunal Federal, com ministros que exalam vaidade, e que ainda justificam uma distorção que, nas contas de O Globo, somam R$ 7 bilhões, e que “considerando todos os valores de indenizações e direitos eventuais, o total chegaria a R$ 12 bilhões”.
Estes valores são equivalentes a verbas de gestão de um Ministério robusto da esfera federal, por exemplo, tal como o Ministério do Meio Ambiente, só que multiplicado por três, é um assalto. E as justificativas são enviesadas, em que magistrados se protegem mutuamente, fechados em copas. Este é o corporativismo sonso da Justiça brasileira.
Para agravar a crise moral, temos agora um sistema jurídico sob suspeitas de corrupção, com casos se multiplicando, sobretudo, neste último ano de 2024, envolvendo vendas de sentenças, que pune (quando pune) apenas com aposentadorias túrgidas, sem descontos, revelando um Poder Judiciário disfuncional e onívoro.
Tais magistrados suspeitos estão incrustados no sistema de tal forma, que o colapso destes rábulas assanhados travestidos de jurisconsultos, sendo protegidos por respostas protocolares de seus colegas, mesmo diante de escândalos em sete estados da Federação e na segunda Corte mais importante do país, só pode advir de uma punição exemplar, e que demandará uma resposta sistêmica à altura do contorcionismo linguístico e da ginástica hermenêutica dos preclaros magistrados.
Este jogo de poder, que não é limitado pelo CNJ, cria pequenos magistrados autoritários, tais como um desses descendentes de famílias tradicionais com sobrenome composto, vindos das capitanias hereditárias que, por sua vez, eram descendentes dos degredados de Portugal.
Tais degredados se tratavam de uma malta de ladrões e punguistas expulsos do Império, um sangue ruim, amargo, e que um de seus tataranetos deu uma carteirada num fiscal, durante a pandemia, arrotando um francês macarrônico, para “humilhar” o fiscal que lhe estava notificando, em que o desembargador mimado rasgou a notificação, sendo gravado, no entanto.
Diante dos problemas fiscais do país, que não pode alavancar a sua dívida pública impunemente, pois não tem moeda conversível, as justificativas e fundamentações para tantos penduricalhos, que sustentam o Judiciário mais caro do mundo, é a hipocrisia a serviço do escárnio.
É uma casta privilegiada sambando na cara da sociedade civil assalariada, sobretudo do funcionalismo raiz, que é sempre o primeiro e talvez único a ser objeto destas propaladas reformas administrativas, diante de um Legislativo intacto, de cargos de poder e miríades de DAS (Cargo de Direção e Assessoramento Superior) e cargos comissionados se multiplicando. Diante de assessorias numerosas, a serviço, muitas vezes, de rachadinhas.
E, por seu turno, no topo do sistema, temos um Judiciário intacto, incólume, com uma carapaça intransponível pela burocracia administrativa, e com a vista grossa de um CNJ que faz parte desta mesma estrutura de casta.
Contudo, a opinião pública começa a perceber o escárnio, pois a sanha é tanta, que agora o rei está nu, o rabo está para fora do tapete, e existe uma jamanta sendo cevada indefinidamente com verbas vindas do Tesouro, dinheiro do contribuinte, para sustentar a casta nababesca de Downton Abbey, com justificações bizarras de um corporativismo cínico, vaidoso e, eventualmente, com desembargadores arrotando na cara de fiscais e ameaçando jornalistas.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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