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A cultura da tortura

Em entrevista a Século Diário, publicada neste sábado (14), o presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), desembargador Pedro Valls Feu Rosa, lamentou que não tenha conseguido dobrar página das violações no sistema prisional capixaba. 
 
Há dois anos, quando assumiu a corte estadual, Pedro Valls prometeu que não mediria esforços para mudar essa realidade funesta. E de fato não mediu. 
 
O desembargador constituiu a Comissão de Prevenção e Enfrentamento à Tortura, que deu vazão às denúncias que estavam represadas até então. Paralelamente à comissão, Pedro Valls criou o Torturômetro. O “contador de tortura”, considerado pelos críticos como ferramenta midiática, surgiu com o intuito de expor à sociedade a gravidade de um problema que sempre foi tratado veladamente. 
 
“Eu não fazia ideia do grau, da rotina que a tortura desfrutava no Espírito Santo. Isso me chocou. Quando nós implantamos o Torturômetro, os primeiros dias ele era ‘zerado’ de manhã, de tarde e de noite. Isso mostrou uma prática inserida dentro de um contexto cultural. Veja que o nosso recorde foi de 46 dias. Nós vivemos num país em que a presidente da República [Dilma Rousseff] já foi torturada. ”
 
A constatação do presidente do tribunal, além de chocante, é muito lúcida, pois ele tem plena dimensão do enraizamento da cultura da tortura no Estado. 
 
Nessa sexta-feira (13), durante o seminário “Violência Estatal e Exclusão Social: o estado policial e a criminalização da miséria no Espírito Santo”, o defensor público Bruno Pereira do Nascimento ratificou a análise do desembargador sobre a cultura da tortura ao fazer uma grave denúncia. 
 
O defensor público apresentou dados alarmantes sobre as violações no sistema penitenciário capixaba que, como alertou o desembargador, não cessaram. Ele disse que o sistema segue a lógica perversa do aparato punitivo.
 
Nascimento explicou que durante o governo Paulo Hartung predominou a lógica de dominação do corpo do detento, com mortes, esquartejamentos e mutilações. Depois de todo o processo de reformulação do sistema, a perversidade foi refinada, já que a massa de exclusão social foi retirada das “masmorras” e colocada em unidades novas. 
 
O defensor advertiu que o próprio Estado legitima as violações. “Estamos vivenciando um exponencial crescimento do uso de munição não letal dentro das unidades prisionais”. 
 
Nascimento exibiu ao público um vídeo que mostra um agente penitenciário colocando um preso no “procedimento” na cela, que consiste em sentar no chão, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça para revista. Com a negativa do preso em atender a ordem, o agente atira uma bomba de gás lacrimogêneo na cela e o preso, já sentado e com as mãos entrelaçadas, desmaia. 
 
O preso teve de ser arrastado para fora da cela e não recobrou a consciência até o fim do vídeo, que tem cerca de quatro minutos de duração. 
 
A cena, para muitos, pode ser corriqueira e não tão grave, se levarmos em conta que até outro dia os presos eram trucidados nas unidades. 
 
Mas do que o flagrante de violação, o que mais choca é o fato de o vídeo ter sido feito pelos próprios agentes. Eles interpretaram o vídeo como um procedimento bem-sucedido dos agentes para impor disciplina aos presos. Talvez tenha até finalidade didática para treinar agentes novatos. 
 
O episódio reforça a análise de Pedro Valls, que faz um alerta para os que acham que prisão é lugar de sofrimento, suplício, tortura e outras formas de violações. Vale a reflexão a seguir do presidente do tribunal para todos aqueles que criticam os militantes de direitos, os julgando, pejorativamente, como “defensores dos direitos dos manos”. 
 
“No Brasil, não há prisão perpétua. Essas pessoas, esses torturados, daqui a pouco vão estar na rua, do meu lado, do nosso lado, do lado de nossos familiares. Então é uma questão de inteligência. Não é à toa que o índice de reincidência [nos presídios brasileiros] chega a 80%. Será que as autoridades não perceberam que estamos enxugando gelo? Isso está errado. Vamos tirar o aspecto cristão, vamos pela lógica, está errado. Confesso que foi uma experiência aterradora constatar o grau da tortura”.

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