quinta-feira, setembro 19, 2024
23.8 C
Vitória
quinta-feira, setembro 19, 2024
quinta-feira, setembro 19, 2024

Leia Também:

Afetos virtuais

Crescente dependência a assistentes virtuais revela uma nova dimensão da solidão

Vivemos uma era de paradoxos: a tecnologia avança rapidamente, enquanto a solidão se espalha como uma epidemia. Um estudo recente da Talk Inc., liderada por Carla Mayumi e João Paulo Cavalcanti, revela um fenômeno intrigante: muitos brasileiros estão se conectando emocionalmente com a inteligência artificial, tratando chats virtuais como amigos ou conselheiros. Este cenário levanta questões éticas e sociais profundas sobre a natureza das relações humanas e a influência da tecnologia em nossas vidas.

Carla Mayumi destaca que a solidão crescente, observada tanto no Brasil quanto globalmente, impulsiona essa busca por interação através de IAs. A promessa de uma “companhia” que está sempre disponível, que não julga e que demonstra uma forma de empatia digital, atrai aqueles que se sentem isolados. As IAs, por sua vez, são projetadas para imitar comportamentos humanos de forma tão convincente que o risco de dependência emocional se torna palpável.

A sofisticação dessas ferramentas é um fator determinante. O recente avanço no modo de voz do ChatGPT, desenvolvido pela OpenAI, cria uma sensação de realismo quase irresistível. Respostas em tempo real, ajustes a interrupções e a capacidade de avaliar o estado emocional do usuário elevam o assistente virtual a um nível de interação que pode confundir os limites entre a máquina e o humano. O relatório da OpenAI aponta para o perigo de tais tecnologias reduzirem a necessidade de interações humanas genuínas, o que pode prejudicar relacionamentos reais e afetar o bem-estar dos indivíduos.

Enquanto startups como a Character.AI, cofundada por ex-funcionários do Google, e a Hume AI, cofundada por Alan Cowen, desenvolvem avatares e interfaces que simulam personalidades humanas com grande precisão, o estudo da Talk Inc. revela uma adaptação peculiar no Brasil. A natureza comunicativa dos brasileiros, que frequentemente recorrem a uma linguagem rica em expressões e gírias, parece se encaixar perfeitamente com a capacidade das IAs de manter conversas naturais. Isso facilita uma conexão mais profunda e emocional, transformando esses assistentes em algo mais próximo de verdadeiros parceiros.

Essa aproximação tem seus riscos. A pesquisa mostra casos de usuários que dependem das IAs para decisões pessoais críticas, como dietas e escolhas profissionais. Embora os assistentes virtuais possam ser úteis em tarefas operacionais, sua capacidade de fornecer conselhos pode levar a dependências prejudiciais e à exposição de informações pessoais. Jefferson Denti, da Deloitte, adverte para os perigos da dependência emocional e da possível inadequação das recomendações feitas pelas IAs.

O fenômeno da relação afetiva com IAs não é totalmente novo, mas sua ampliação levanta questões éticas significativas. Inspirados pelo filme Her, alguns usuários já desenvolvem laços românticos com assistentes virtuais. A pesquisa indica uma divisão de opinião: enquanto a maioria acredita que tais relações não deveriam ser permitidas, uma parcela significativa defende o direito a se relacionar afetivamente com IAs.

Domenico Massareto, fundador da startup RAIN, sugere que essa dependência emocional pode ser uma estratégia de negócio intencional. Comparando com o design de feeds de redes sociais para capturar e prender a atenção, ele alerta para o potencial de manipulação das emoções humanas pelas empresas de tecnologia. A transparência e a responsabilidade na gestão dessas tecnologias se tornam, portanto, questões fundamentais.

A pesquisa da Talk Inc. aponta que o uso de assistentes virtuais está se tornando cada vez mais comum, especialmente para tarefas diárias. A ideia de um “gêmeo digital” que organiza a vida e melhora a produtividade se torna uma realidade palpável. Contudo, ainda estamos longe de compreender totalmente as implicações dessa “companheirismo artificial”. O crescente papel das IAs em nossa vida reflete uma tendência de substituição das conexões humanas por interações digitais, uma mudança que merece uma reflexão crítica e cuidadosa.

Enquanto a tecnologia avança e os afetos artificiais se tornam mais comuns, devemos estar atentos ao impacto potencial desses novos relacionamentos em nossa vida emocional e social. A questão central permanece: até que ponto a inteligência artificial pode e deve substituir o calor humano nas interações do dia a dia?

Flávia Fernandes é jornalista, professora e pós-graduanda em Inteligência Artificial e Tecnologias Educacionais pela PUC-MG.

Instagram: @flaviaconteudo

Emal: [email protected]

Mais Lidas