Vi a arraia estendida na pista que cobre o píer, já vencida pelo cansaço
Sentir a maresia nos pulmões, entre os marulhos que dançam nos ouvidos. E depois, com a música batendo e a caminhada vigorosa adiante. Em uma tarde suave na Praia de Camburi, onde estou muitas vezes para ir por todo o calçadão, como num hábito de suar e não parar nunca, à espera da chegada e de um banho confortável, da sensação de bem-estar que vem após o esforço físico.
A disposição, nesta tarde em que cheguei a Vitória, no Espírito Santo, eu não sabia que poderia ser uma tarde inspiradora. A caminhada se fazia como rotina, um exercício comum, em que as minhas pernas vão adiante, e não paro, não descanso e nem me canso, vou e volto no mesmo fôlego. Me habituei à caminhada longa, que dura em torno de duas horas, sem parada, somente se for, eventualmente, para beber uma água de coco. Na Praia de Camburi agora tem aos montes. As barraquinhas em que você pode pagar tudo no Pix ou no PicPay.
Normalmente, eu vou até o final da praia, na altura do píer de Iemanjá, mas não entro no píer, só se me der vontade. Nesta tarde, no entanto, me deu vontade de avançar até o píer, entrar e ir até o final, onde fica a grande estátua de Iemanjá, perto da Ilha do Frade, e que tem uns barcos e alguns pescadores. O vento vem suave, e o cheiro da maresia e a sensação da imensidão e de que não sei de nada como uma convicção de fortuna. Conto com o que vem, confio, mesmo sem saber.
Parei, e se não me engano, sentei na beirada final do píer de Iemanjá. A grande estátua tem os braços estendidos, como se recebesse quem ali vinha para pensar, contemplar e olhar o horizonte, entre os navios que saíam do Porto de Tubarão, e a grande praia estendida à esquerda, formando um grande arco, uma parábola de areia comum à toda enseada. O mar é esverdeado, o céu estava claro, tudo em paz, e eu já sentindo o conforto que advém do esforço da caminhada, que é a energia ligada, a disposição ativada e a respiração conduzindo tudo entre os batimentos do coração.
Depois de ter ter feito a minha contemplação, pensado na vida, ou apenas respirado calmamente, relaxando da primeira parte da caminhada, pois ainda teria a volta até o bairro de Jardim Camburi, eu não tinha ideia de que algo me surpreenderia, e que é comum aos pescadores, um evento banal, mas que me chamou a atenção e me fez tirar até uma foto: era um pescador que tinha pescado uma arraia.
A cena que vi foi de quando levantei do final do píer e fazia o meu retorno para a caminhada, mas parei ao ver, nas pedras de baixo que também cobrem o píer de Iemanjá, no lado voltado à Praia de Camburi e diante do mar, um pescador que lutava com uma arraia. Ele fazia a doma desta arraia, e esta se debatia ferozmente nas pedras, com o anzol que já a tinha capturado, e neste caso não vi arpão, se não me engano. A luta do pescador com a arraia se debatendo, ele tentando domá-la, tudo formando uma grande coreografia de pesca.
A coreografia foi intensa, até que o pescador, que também se equilibrava entre as pedras irregulares e protuberantes que formavam o píer, conseguiu domar a sua fera, ou melhor, a arraia. A luta pela vida deste parente próximo do tubarão tinha sido em vão. Eu acompanhei esta luta feroz entre pescador e pesca, e que sendo tão comum a um pescador, era algo digno de uma foto para um transeunte que não pesca. Se fosse um peixe, não teria sido tão curioso. Mas esta cena de arraia era já um evento diferente no meu primeiro dia em Vitória, depois de ter vindo de avião do Rio de Janeiro.
Ao final, eu vi a arraia estendida na pista que cobre o píer, já vencida pelo cansaço, respirando nada mais, pois era um peixe cartilaginoso, do filo dos chordata, da subclasse dos Elasmobranchii, que possui fendas branquiais, que agora procuravam o H²O, e não havia mais, estava fora do mar, estendida no chão do píer.
Foi quando eu bati a minha foto, como se fosse algo de um rolê aleatório, de algo que passa como irrelevante nas redes sociais, mas que me faz postar mesmo assim. Pois o que me chama atenção, muitas vezes, pode ser interessante para uma crônica, mas passa batido para muitos outros temperamentos, também nas redes sociais. Postei esta foto no Instagram, e pareceu mesmo um rolê aleatório, pois tinha mais de um ano que não usava o Instagram. Só fiz isso do nada.
As arraias típicas possuem barbatanas, têm o corpo achatado, com uma diferença apenas morfológica dos tubarões. São peixes batoides, pois suas fendas branquiais estão debaixo da cabeça, diferente dos tubarões. Podem viver no fundo do mar como as arraias demersais, e tem o caso das jamantas, que são pelágicas (isto é, vivem próximas a ilhas). Tem ainda as arraias verdadeiras, que possuem barbatanas dorsais na extremidade da cauda, além dos uges ou ratões, estes que possuem na cauda um espinho venenoso que podem causar náuseas, vômitos, etc. As toxinas na cauda de algumas arraias também podem ser fatais para um ser humano.
Uma tarde calma na Praia de Camburi me trouxe este cenário inusitado. Passaram alguns meses e acho que a descrição tão prosaica tem uma riqueza de coreografia. Nada substitui a sensação de ver este embate do pescador com a arraia. Este texto não cobre a intensidade de ver e ouvir aquelas barbatanas batendo nas pedras, e o anzol puxando e repuxando, e o pescador fazendo seu trabalho de musculação e resistência para domar este peixe batoide, primitivo, com cartilagem, e que lutava para não morrer.
Outra coisa curiosa, por fim, foi eu ter ido até o final do píer ao invés de dar meia-volta em sua entrada, como faço muitas vezes nas minhas caminhadas quando estou nesta praia, e a razão insondável de eu ter presenciado esta agitação toda no momento exato em que saio de minha contemplação e faço o meu movimento para sair do píer, parar, ver isto acontecendo, e tirar uma foto.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com