Já nem lembro mais onde guardei minha primeira pedra
Elas só andam juntas e sempre de preto absoluto, por uma boa razão: para não errar nas cores da moda – um pé de meia verde outro vermelho, por exemplo. Um lenço rosa choque com um casaco amarelo. Com tudo preto, ninguém erra e não correm o risco de estar fora de moda. Tudo que compram é à vista – o uso de cartões de créditos ou cheques pode acarretar sérios danos ao bom nome de todas – usam conta conjunta – para não esquecer o pagamento. Quem não esquece de pagar uma ou outra conta que atire a primeira pedra. Já nem lembro onde guardei minha primeira pedra.
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Mesmo porque, tem tudo por perto – a casa assobrada, jardim na frente, quintal com tanque de lavar roupas atrás – “Nossas roupas comuns dependuradas, na corda qual bandeiras desfraldadas” – lembram do samba mas não lembram qual, e se distraem assistindo as roupas comuns dançando ao vento. As esquecidas esquecem que têm televisão. Repito, caso esqueçam – A casa é o último quartel da resistência pacífica ao ataque da modernidade: em volta só espigões – feios, mal mantidos, pinturas descascadas, ladrilhos soltos, janelas forradas com jornais.
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Não esquecendo que em volta tem de tudo – supermercado, padaria, farmácia, dentista e consultórios médicos. Feiras nos fins de semana, bares barulhentos no que antigamente se chamava a calada da noite. As esquecidas esquecem de fechar as janelas: nos sábados, o barulho de vozes encharcadas de cerveja e música cafona a todo volume não deixam as esquecidas dormirem. Dizem que amanhã cedo vão ligar pra a polícia – mas esquecem. As esquecidas de vez em quando brigam – depois esquecem. Quem pegou minha coisa que tava aqui? Que coisa? Ah, esqueci.
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Compras só com dinheiro vivo – se esquecerem a bolsa em casa é fácil voltar para pegar. As esquecidas às vezes, ou frequentemente, esquecem aberto o gás do fogão – sem a chama. Sêo Venturin, do restaurante ao lado, sente o cheiro e manda lá o menino de entregas, que bate na porta – as esquecidas não gostam dessa expressão, como não gostam que lhes batam na indefesa porta. Por favor, diga bate à porta, somos professoras de português no renomado Convento das Caridosas. As esquecidas esquecem que já estão aposentadas há séculos, e que o Convento das Caridosas é hoje templo evangélico. Ficam muito agradecidas, mas esquecem da gorjeta.
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As esquecidas pertencem a uma confraria anônima espalhada pelo mundo com muitas coisas em comum, como esquecerem das reuniões anuais e de pagar as mensalidades As esquecidas devem obrigatoriamente esquecer: de pagar todas as contas, de devolver tudo que pegam emprestado, de agradecer favores, de tomar remédios, do nome do ator daquela novela que não lembram qual, de retribuir gentilezas, do nome da música, de pagar dinheiro emprestado, de respeitar os direitos alheios. Tem outras coisas, mas agora não lembro.