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Aventuras loucas

Ele me contou uma versão inteira da segunda guerra como uma trama alucinatória

Eu estava pensando numa pauta, logo em uma semana uma ideia fervilhou a minha cabeça. Eu tive uma tia que já morreu que sofria de alucinações auditivas, conversava com Frank Sinatra e Marlon Brando, minha mãe dizia que as conversas eram bastante exaltadas.

Tive esta ideia, então, de pedir autorização a um Capes de frequentar por uma semana o confinamento disfarçado de interno em tratamento psiquiátrico. Queria anotar tudo e juntar, resumidamente, para esta pauta que escrevo agora.

Primeiro, tive que ter uma longa e extenuante conversa tentando persuadir o diretor de saúde de que eu, jornalista e antropólogo, ficasse por sete dias em meio aos internos e fazer esta pauta, depois de muito esforço, ganhei a autorização para me internar.

Fui então lotado em um quarto junto com dois outros internos, um deles me abordou pela manhã, depois do café coletivo, e disse que já tinha morrido há cinco anos e que vagava como uma alma penada para assustar os outros. Ele me dizia que tinha morrido de tifo depois da segunda guerra mundial, numa batalha em Waterloo. Pelas minhas contas, sua alma penada vagava perdida em 1950, depois de ter morrido em 1945, e estamos em 2021.

No meio da tarde, um dos internos, que falava muito alto, e sacudia a cabeça num tipo de tique insuportável, me perguntou sobre tudo, o que eu tinha estudado, quem eu era, do que eu gostava de comer, sobre a minha família, sobre se eu já tive casamentos e separações, se eu usava drogas, e mais umas centenas de perguntas que renderam a tarde toda.

Respondi tudo com alegria, e ele imitava as minhas respostas dizendo que também tinha feito aquelas coisas, só que em um efeito multiplicado, típico de um mitômano que não engana ninguém e que pensa que engana qualquer um.

Eu levei um bloquinho, e uma caneta escondida, levei uns livros para ler durante a internação, um deles era A Metamorfose de Kafka, que narrei para um dos internos que estava dormindo no meu quarto. Eu falava de Gregor Samsa, e o interno começava a urrar, rastejar e dizer que também se sentia um inseto.

Este interno disse que no dia em que foi internado, ele falava uma língua que ninguém entendia, dizia que era inglês arcaico, e disse que tentou se jogar de uma ponte num rio que nem a Ofélia de Hamlet, e foi resgatado um dia depois, desacordado, sendo internado depois disso.

Já dava meia-noite, ligamos o ventilador, este interno começou a conversar com o ventilador, rezava um dialeto de arrependimento e redenção, uma ladainha insuportável, eu tentava dormir, fugi do quarto, tentei dormir em outro que tinha uma cama sobrando, lá pelas uma da manhã tomei um tarja preta e apaguei, sonhei no meio da madrugada com corridas de cavalos e corridas automobilísticas. Tentei interpretar aqueles sonhos na manhã seguinte e não consegui.

Rodava no meio desta tarde que tinha um novo interno que era assassino, não levei a sério, e foi exatamente este interno que veio falar comigo, e logo disse que tinha gostado de mim e perguntou o que eu fazia ali, pois ele sacou que eu não era louco coisa nenhuma, que estava ali fazendo outra coisa.

Perguntei para ele na lata se ele tinha matado alguém, e ele me disse que tinha atropelado uma pessoa em cima de um cavalo, e que seu carro capotou, ele teve um surto depois de beber muito, desceu do carro, sacou uma faca, e deu facadas na vítima que já estava morta, aí foi que eu saquei o lance do sonho. Saí de perto daquele cara, arrumei uma desculpa, e fui ler ao ar livre o meu livro sobre Biologia que eu queria estudar e entender melhor.

Depois voltei a conversar com a tal alma penada, ele me contou uma versão inteira da segunda guerra como uma trama alucinatória, suas histórias de suas batalhas tinham riquezas de detalhes, mas parecia um conto de Lovecraft aditivado com ácido lisérgico, este cara poderia ser um surrealista se tivesse tido juízo, mas era um interno que pensava que tinha morrido em 1945. Ele morrera dentro de sua alma, e esta era a minha interpretação, e agora se refugiava em suas fantasias, não tinha mais vida.

Fui conversar no outro dia, novamente, com o suicida shakespereano, mas ele era uma pessoa tão lamuriosa e escurecida pelos próprios erros, o tempo todo dominado por uma arenga autoindulgente, que fui ler novamente o meu livro de Biologia, e fui ler sobre síntese proteica e mitocôndrias.

No fim da tarde, resolvi organizar as minhas anotações, e o louco que perguntava tudo começou a me infernizar, mas como tinha gostado de sua curiosidade, abri uma exceção e lhe contei mais histórias, e enfim disse que era cronista, jornalista, e então ele me contou as suas glórias como jornalista, um dos maiores de todos os tempos, e que tinha um jornal no qual ele era o diretor-chefe e redator, ele escrevia seus artigos e sempre se destacava no que fazia.

Depois, o chato suicida tentou me alugar novamente, eu já estava no meu último dia de internação, chamei o tal assassino para conversar com ele, o suicida lamurioso ficou com tanto medo que se borrou nas calças, e um dos membros da equipe médica chamou um enfermeiro para limpá-lo. O suicida, então, além de um chato de galochas, tinha medo de tudo, se cagava, logo concluí que tinha sido mimado a vida toda, e provavelmente nunca tinha feito nada por mérito próprio, culminando nesta ladainha de maria arrependida.

Saí pela manhã da internação, depois de uma última e divertida conversa com o mitômano curioso, eu falei sobre meu trabalho de jornalista, e ele me disse, mais uma vez, de seus prêmios diversos como articulista e repórter, me diverti com suas histórias criadas de sua imaginação, saí da internação, e agradeci o diretor de saúde, já tinha a minha pauta, o bloquinho de notas estava cheio.

Guilherme Thompson, cronista e outsider.

Guilherme Thompson é um cronista outsider, documentarista eventual, jornalista autodidata, nascido em 1/1/1974 na cidade do Rio de Janeiro, ganha a vida em jornais diversos, trabalha por demanda própria, vive nas ruas caçando pauta, meio como um antropólogo intuitivo, estuda literatura e filosofia por conta própria, gosta de se vestir com camisas de bandas de rock clássico.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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