O patriarca viveu bem com essa discrepância e dormia em paz
As complicações gramaticais que nos torturam foram criadas por monges entediados vagando por solitários mosteiros: rezar, ler, rezar, jejuar – repete. Inventar uma gramática simples e acessível a todos jamais passaria pelas cabeças desses cultos coroinhas. Dois mil anos depois ainda somos atormentados por complexas equações – com Esse ou com Z? Com dois Esses ou uma cedilha? Por que inventaram o C de rabinho se usando dois Esses soava do mesmo jeito?
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Com H ou sem H? Uma simples dúvida gramatical se tornou filosófica e adentrou o âmbito familiar – Ademar ou Adhemar? Por acaso não soam do mesmo jeito? O patriarca não está mais entre nós para esclarecer as razões do nome aparecer grafado de forma diferente em documentos formais e escritos informais. Por que ninguém se preocupou com esse pequeno deslize ortográfico antes? O mistério desse indefeso H ora presente em papéis amarelados pelo tempo e ora ausente em outros tem sido tema de longos debates.
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Culpa dos avanços da tecnologia que nos permite dialogar mesmo à distância sobre os assuntos mais diversos: Com quantas letras se escreve no Twiter? Qual é o maior escritor russo de todos os tempos, Dostoievsky ou Tolstoi? Quem inventou o pó de mico? Por que a letra H foi sumariamente eliminada de um nome eternizado em cartório e consagrado na pia batismal?
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Culpa das reformas ortográficas, que querendo facilitar mais complicam. Qual POR tem chapeuzinho? Na pressa dos emails e mensagens de texto, condenados a recarregar a parafernália eletrônica diariamente, quem tem tempo para silogismos? Todos os nomes são corretos, Ademar e Adhemar são nomes, portanto, ambos são corretos. Corretíssimos, direi, embora nem sempre aplicáveis ao mesmo indivíduo. O patriarca viveu bem com essa discrepância e dormia em paz.
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Hoje em dia, por questões de segurança o fisco espreita em cada esquina. Mas ainda tem muita gente com nomes diferentes aparecendo nos muitos documentos que a lei exige. Já vi pessoas voltarem do aeroporto porque um agente mal-humorado captou um erro no nome grafado no passaporte – com X aqui, com Z ali. O passageiro perde a viagem e perde tempo nos labirintos das repartições públicas sem achar quem saiba corrigir o problema.
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Mesmo levando um papelzinho com o nome completo do recém-nascido grafado do jeito que os pais queriam, o escrivão no cartório ou é distraído ou tem senso de humor, e grafa o nome errado. Uma sobrinha viveu anos com o nome de pia – tem diploma de curso superior emoldurado na parede, viajou várias vezes ao exterior, casou, teve filhos, pagou impostos. Até que um dia ela é informada que o nome na certidão de nascimento não bate com o que ela usou a vida toda.
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O sujeito vai ao cartório registrar a filha e mostra o papelzinho: Lucrécia das Noves. O escrivão se revolta, Não vou fazer esse registro, o senhor sabe quem foi Lucrécia? Sei sim senhor, minha santa avó. Como na literatura policial onde o mordomo é sempre o culpado, nos nomes errados o escrivão é sempre o culpado. Com tantos anos corridos, ninguém procurou a certidão de nascimento original que esclareceria o mistério: Ademar ou Adhemar? Perderia a graça.