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Dando chance para o azar

Expor crianças e jovens a risco, com o retorno às aulas, vai na contramão do educar para a vida, com exemplos e coerência

O enfrentamento à pandemia do novo coronavírus revelou estadistas e enganadores desde o seu começo. Enquanto o governo federal buscava minimizar o problema na defesa da economia, rifando seus próprios ministros, um após o outro, promovendo aglomerações e criando factoides políticos para emprenhar seus seguidores de sua insanidade, o governo do Estado se manteve firme em defesa da vida e, sabemos, evitou muito mais mortes no Espírito Santo.

Esses são os momentos em que o estadista demonstra sua virtú, expressão maquiavélica que revela a ação viril, muitas vezes audaciosa, a capacidade de discernimento para tomar atitudes fortes, mesmo que contra a opinião geral, conceitos religiosos, culturais e até morais. É quando o governante faz uso de seu poder, baseado em seu entendimento na consciência de que quem lhe julga, mais que as pessoas, é a história.

O retorno à normalidade possível vai se dando de forma cautelosa, mantendo o distanciamento social, evitando aglomerações em estádios de futebol, shows, cinemas, teatros, etc. até que surja uma vacina.

Agora, “a pergunta que não quer calar”: por que nosso governo, depois de enfrentar oposição local e nacional em defesa da vida, quer retornar as aulas, faltando menos de três meses para encerrar o ano, se o vírus continua circulando e ainda não temos a vacina?

É certo que a situação está beirando o insuportável, que todos estamos gritando pela normalidade, seja ela como for, que tem pais querendo retornar seus filhos para a escola de qualquer forma, que muitos professores estão tristes e saudosos do chão de sua sala de aula, que muitos investidores no “negócio da educação” estão desesperados por seus lucros, e que os alunos também já cansaram dessas férias forçadas e inúteis (para o que se aproveita de férias). Porém, nada disso pode ser argumento para o retorno, já que desde o começo da pandemia, como disse antes, a atitude pela vida sofreu fortes e poderosas resistências.

O que aconteceu com a virtú? Ela existe em nosso governante ou é mesmo tudo politicagem? A “defesa da vida” foi o exercício da virtú pelo povo, ou para o fortalecimento de um governo de oposição ao governo federal?

Me parece que a linha divisória entre essas duas posições está fina demais, tênue, difícil de ser percebida.

Estamos assistindo, mundo afora e também em alguns estados brasileiros, a tal segunda onda. China, Espanha, Alemanha, Amazonas, Rio de Janeiro, dentre outros, já estão com sinalização dela.

Penso que arriscar numa retomada de aulas presenciais por menos de três meses, não vai recuperar os sete meses parados, não se justifica, expõe a população e também a credibilidade do governo, que até então caminhou bem e teve seu mérito reconhecido.

Estamos todas e todos traumatizados, contidos, com nossas emoções abaladas, carentes de coisas básicas como: abraço, colo, boas risadas, brincadeiras, etc. e a escola é lugar de tudo isso e muito mais. Afinal, o aprendizado é permeado pelas relações e, sendo eu um professor da rede pública, quando vejo as escolas recebendo estudantes com distanciamento, medo, em lugares marcados, usando máscaras, num sistema de rodízio, fico pensando que isso é só um faz-de-contas, que ninguém vai aprender nada nesses poucos encontros distanciados, e que nosso governo poderia fechar essa conta no lucro do exercício de seu poder, com a marca do zelo pela vida da população e a coerência mantida.

Afinal, plagiando os “memes da internet”, o que os sobreviventes precisam aprender em 2020 está diretamente voltado à pandemia. Cabe à população, basicamente, os cuidados pessoais com a higiene e saúde. Já para o Estado, o básico é bem maior: administrar a oferta dos serviços públicos de saúde, saneamento e assistência social, para que todos tenham moradias dignas, trabalho e renda, além de incentivar uma cultura de solidariedade entre a população que garanta dignidade para todos.

Assim, me parece que a população já fez o dever de casa e pode retornar à escola, mas o governo precisa de muito mais tempo e empenho, pois sua negligência está escancarada pelas ruas, favelas, cárceres lotados, etc. e, retornando as aulas, irá expor principalmente às crianças e aos jovens sua incompetência, colocando em risco a população e educando pelo exemplo negativo, ou seja, atirando no próprio pé.

“Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”. Nicolau Maquiavel


Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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