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De mala e cuia

Quem ainda confia nessas desvairadas maquininhas eletrônicas?

O telefone toca às duas da manhã, ou pior, às duas da madrugada, aquela hora sagrada em que o sono finalmente atinge a fase REM, com direito a sonho colorido. Só pode ser engano, pensa, e ignora a chamada. Sono e sonho, onde andam vocês? Mas quem consegue voltar ao sono – mesmo com o melhor dos sonhos – depois do telefone disparar os primeiros acordes do Hino Nacional? Quando o sono e o sonho não voltam, o remorso ataca: devia ter atendido.

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O resto da noite se divide em duas questões: Se não foi engano, quem ligou vai ligar de novo. Ligar de volta será pior, pois ninguém, em sã consciência, liga para dar uma boa notícia no aconchego da madrugada. Passei no concurso! Ganhei na loteria! O bebê nasceu, parto normal! Noivei: o Gentil finalmente decidiu, embora não muito gentilmente. Mesmo boas e importantes, as boas notícias sempre aguardam o amanhecer. Amiga, tô me mandando pra Portugal de mala e cuia!

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Antigamente diziam que as más notícias andavam a cavalo, querendo dizer que chegavam depressa. Hoje, porém, quando a Amazon já faz entregas com carros sem motoristas, a expressão “a cavalo” virou lentidão. O celular ganha essa corrida, se a gente não esquecer de carregar. Parêntesis: devido aos problemas de trânsito que o povo enfrenta diariamente, por que a Amazon não investiu em entregas por meio de drones? As maquininhas voadoras iriam escurecer o céu, claro, mas com menos poluição.

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Não vamos culpar a Amazon pela abrupta interrupção do sono de ninguém. Ana Lena Cabral, a que perdeu um bom sonho por causa de um telefonema fora de hora, não tem celular, nunca fez compras pela Amazon, jamais usou e não pretende usar os serviços do Uber ou do Lyft. O telefone teimosamente atado a uma tomada na parede também não tem Caller ID, mais conhecido como identificador de chamadas. Quem ainda confia nessas desvairadas maquininhas eletrônicas? Portanto, ligar de volta é impossível.

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Leninha passou o dia em desespero: ligou para todas as pessoas conhecidas e até para algumas desconhecidas, tentando identificar a chamada noturna. Por acaso foi você? As pessoas em questão se espantam: já que acordou, por que não atendeu? Já que não atendeu, e ninguém mais ligou, esquece, foi engano. Fácil falar para quem gosta de se enganar. Para Ana Lena, porém, a vida não é tão simples. Alguém ligou, portanto, algo trágico aconteceu. Se foi engano, quer dizer que um hacker invadiu minha vida.

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Ana Lena se mandou para Portugal, de mala e cuia. Por mar, como seu antepassado. No navio, um marinheiro de Braga perguntou o que ela queria dizer com “de mala-e-cuia”. Ela: quero dizer que vou para ficar, não volto mais. Ele acha a gaja muito gira: Mala-e-cuia quer dizer que tu carregas muita bagagem, mas não vais ficar. Durante as calmarias já estavam se agitando, e se casaram na Igreja de São Frutuoso, em Braga. Mas em um frio e tenebroso inverno, no meio da madrugada o telefone toca. O português mandou retirar o telefone.

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