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De repente, um banquete

No caldeirão da cozinha brasileira, as três raças tristes criaram um banquete de incomparável sabor

A modernidade nos pegou de surpresa. Tudo começou com um tripé em cima do braseiro. Minha avó cozinhava a polenta em um fogão aquecido com palha de café, minha mãe fazia a polenta no fogão a lenha. Aí veio o fogão a gás, grande avanço na cozinha moderna. Morando em outro país uso o fogão elétrico, rápido e prático, mas faço a polenta na panela de arroz – menos tempo e menos sujeira. Mas o sabor é o mesmo?

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Menos polenta também, porque família é organismo vivo, se adapta aos tempos e aos costumes que vão se transformando devagar, feito nuvens no céu. Os filhos criaram asas, mas ainda apreciam a tradicional papa de farinha de fubá cozida em água e sal, que os descendentes de italianos chamam de polenta, e a herança africana chama de angu. O sabor é o mesmo? Desligados dessas nuances gastronômicas, os netos só querem hamburguers. Chick-fil-A, please!

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Os entendidos da nossa herança culinária insistem que angu não é polenta e polenta não é angu de rico – são pratos distintos de países e culturas diferentes. Mas o sabor é o mesmo? A polenta registra nossa ancestralidade europeia, o angu veio das tradições africanas. Alimento simples e abundante, era a base de sustentação dos escravos, ajudando-os a suportar e superar as agruras da vida nas senzalas. Junte-se a esse caldo os temperos primitivos dos índios, e como já foi dito, no caldeirão da cozinha brasileira, as três raças tristes criaram um banquete de incomparável sabor.

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Nesse rico banquete acrescentamos o quibe e o hams com terrine, herança da nossa cultura árabe. Todos os países do oriente têm o hams como seu prato tradicional, disputando a honra de ter inventado a iguaria. Nós, brasucas, o aceitamos e incorporamos ao nosso cardápio cultural, servido com angu ou polenta, galinha ao molho pardo e nossa singela versão do estrogonofe russo. Bota água no feijão e de repente temos um banquete. Traz mais um prato que chegou mais um.

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Ligo a televisão e almoçamos ao som de bombardeios além-mar, com más notícias bombando de todo lado. Nesses tempos conturbados, a paz entre os homens de boa vontade de há muito desapareceu. Lembro minha sogra contando as maravilhas da terra onde jorrava leite e mel, fartura de hortelã e carne de carneiro, com frutas tão doces como as do paraíso. As estradas eram todas asfaltadas, em um tempo em que a única estrada asfaltada no ES era um trechinho entre Cachoeiro e Safra. Hoje, os descendentes de libaneses que conheço estão mandando dólares para ajudar as famílias que têm por lá. As estradas asfaltadas foram todas bombardeadas.

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O homo sapiens sofre uma crise generalizada. Penso nos milhões de refugiados se espalhando pelo mapa mundi, mal-recebidos aqui e acolá, como se o problema deles não fosse de todos nós. Parafraseando Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos, lamentamos: A intolerância, essa pantera, espreita nas sombras. Para melhor saborearmos esse banquete, desliga a televisão, aconselha o mal-humorado fantasma do Augusto.

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