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Do outro lado do rio

Muita água correu embaixo dessa ponte, mas naqueles idos não havia pontes

O rio corre há alguns bilhões de anos, inquieto, constante, emoldurado por dois mundos opostos. De um lado a vida agitada do chamado Século XXI, embora muitos outros séculos tenham transcorrido. Inquietos animais motorizados seguem por trilhas sinuosas, poluindo o ar ao redor. Estranhas ocas alinhadas ao longo dessas vias abrigam tribos exóticas, gente preocupadas com o salário sempre menor que o desejado, a hora marcada para algum compromisso importante, uma pandemia inesperada: tudo muda, tudo passa, o rio continua.

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Na outra margem um matagal verdejante persiste, refletido nas águas que correm em busca do mar, eterno e inconstante. E me permito filosofar: essa é a mesma paisagem que os tupiniquins viam, há mais de 500 anos. Nessas águas riscadas por suas canoas rústicas eles se banhavam, brincavam, morriam – o mundo era do tamanho de suas caminhadas. A única certeza era o retorno diário dos deuses que lhes permitiam viver: o sol e sua esposa, a lua, que um castigo divino separou. Nessa sociedade primitiva, a maior preocupação era achar a alimentação diária.

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Hoje uma velha ponte liga esses dois lados distintos, agredindo essa paisagem quase intocada. Muita água correu embaixo dessa ponte, mas naqueles idos não havia pontes. Os tupiniquins não construíram cidades, templos, palácios. Viver se resumia em nascer, ter filhos, morrer, e não conheciam outro jeito de ser. Com todos os avanços da sociedade moderna, com toda a sofisticação da tecnologia e das ciências, viver ainda se resume em nascer, procriar, morrer.

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Não é preciso muita imaginação para reconstruir a grande virada na vida desses primeiros habitantes da terra brasilis, onde plantando tudo cresce – fome, corrupção, ganância, obesidade. Para nada disto seus pagés conheciam antídotos. De repente, do mar chega a estranha nave de muitos braços, largas narinas que se estufam com o vento. O monstro avança implacável, poderoso, ameaçador. De suas entranhas saem deuses falando línguas confusas, seus corpos envoltos em escamas como os peixes, plumas como os pássaros.

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Quem são eles? Generosos, trazendo farturas? Destruidores, espalhando doenças? Os índios não têm como saber nesse primeiro encontro. São ingênuos, e os tratam com cortesia. Mil e quinhentos anos depois, pouco resta dos donos das terras que usurpamos sem pedir licença e sem recompensas, como pouco resta dessa paisagem.

O matagal já não faz parte de uma floresta, é apenas uma estreita faixa de mato resistindo teimosamente aos ataques das imobiliárias. Poluído e ameaçado, o rio ainda corre – até quando?

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