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Enquanto a bailarina dança

Um pacote que o Google deixa na porta todos os dias, recheado de futuro

A casa da minha infância em Alegre tinha na porta de entrada um arvoredo que em maio se engalanava de flores brancas. Com meu incorrigível otimismo, eu acreditava que aquelas flores brancas, chamadas então flor de maio, vinham celebrar meu aniversário. E por que não? Segundo o horóscopo dos meses positivos, os nascidos em maio são mais ingênuos e mais otimistas do que todos os outros.

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O tempo corre, a vida muda, o mundo volteia como bailarinas bem treinadas, e meus aniversários continuam acontecendo em maio. Tenho tido mais sorte do que muitos outros, provavelmente pessoas com mais méritos ou mais possibilidades do que eu, mas a vida é assim, um labirinto onde vagamos distraídos até que – não mais que de repente – deparamos com a saída. Mais cedo para muitos, mais tarde para poucos. Não sabemos quais deram mais sorte – os que continuam vagando pelos corredores sem portas nem janelas, ou os que acham a saída.

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Como acontece todos os anos, a cada mês de maio vou ficando cada vez mais jovem. Um truque simples fez as rugas desaparecerem: eliminei todos os espelhos da casa. Espelho é coisa de gente jovem, despreocupada e inconsequente. Fotos também estão proibidas – quem gosta de sorrir para as câmeras fotográficas são os fotogênicos. As poses vão se acumulando na memória do celular, que um dia vai sofrer um ataque inesperado de Alzheimer – e assim se perde o registro de uma vida inteira de sorrisos.

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Lá longe, em algum tristonho mês de maio, a árvore de flores brancas foi ceifada – o quintal deu lugar a uma varanda. Com ela foi-se também a mangueira de doces frutos. É o que chamamos de progresso, inovação, renovação. Ninguém chorou a perda – manga se compra no mercado, flor se ganha no aniversário. Desligue-se do passado, que acabou, e encare o futuro onde tudo ainda pode acontecer. Um pacote que o Google deixa na porta todos os dias, recheado de futuro.

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Tempos modernos: ninguém enche uma jarra com flores de maio, como ninguém mata galinha pra fazer molho-pardo. Ou qualquer outro molho. Nos meus primeiros aniversários, a cozinha tinha um fogão de barro branco. O é isso? A criançada ri, jogando A Guerra do Futuro, que é igual às do passado. Pega lá no armário o álbum de fotografias, tem um retrato da minha avó preparando uma galinha ao molho pardo no fogão de barro branco. Ela que matava a galinha. Nossa, a antepassada era sádica!

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A casa da minha infância hoje abriga outra família – com crianças que brincam na varanda, sem saber que houve outrora uma árvore de flores brancas e uma mangueira de mangas doces. Os galhos roçavam o telhado do vizinho, que reclamava das telhas quebradas. Crianças que vão crescer rindo das histórias dos adultos, e partir também, sem saber que a pintura das paredes da sala de visitas era decorada com pequenos coqueiros verdes. Lindos!

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Mais que um evento anual, um aniversário é uma etapa vencida, um obstáculo ultrapassado, um trecho da estrada superado: a medalha de ouro espetada no lado direito, perto do coração. As velas no bolo não se apagam com um único sopro – vão sumindo aos poucos, uma de cada vez. Todo mês de maio a árvore de flores brancas da minha infância, sem mangueira e sem varanda, continua enfeitada de flores brancas.

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