Nosso feijão é a salvação do povão
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Quando nenhum grão foi deixado a macular o piso branco como um susto, o feijão voltou para o vasilhame descuidado. Revolta geral entre os netos que – em sendo tempo de férias – abundam de toda parte. What? Não vai jogar fora um produto alimentício que deslizou feito dançarinos de valsa pelo chão sujo? Disgusting! Eu não vou comer! Grita um. Nem eu! Nem eu! Formação de quadrilha?
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Explico que antes de ir para a panela o feijão é lavado, deixado de molho por um determinado tempo e relavado. Mesmo assim é anti-higiênico, gritam. Ora veja, o que sabem as crianças sobre os intrincados labirintos da alimentação humana? Pois nem só de sonhos vive o homem, e o estômago exige sua quota diária de produtos que adquirimos em supermercados, feito um minotauro de paladar mais apurado.
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Nos tempos em que eu transitava pela BR-101, ligando Vitória / Rio de Janeiro, o que mais me distraía era ver crianças na beira do asfalto vigiando o feijão colhido na lavoura atrás da casa. Isso mesmo, depois de colhido e debulhado, os grãos eram postos a secar ao sol, e quem morava próximo do asfalto tinha um ótimo “terreiro” para secar seu feijão. Quem morava mais afastado usava o chão de terra batida, e sempre vinham resíduos nos pacotes: pedrinhas, pauzinhos e folhinhas secas.
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Produto mais nobre, o cacau também deve secar ao sol, mas em caçambas com cobertura removível para controlar o sol e a chuva. Já o feijão, também conhecido como o primo pobre, quando chovia lá vinha um adulto correndo com plásticos ou lonas de caminhão, ou o casaco do avô para proteger a preciosidade. Moral da história: mesmo se for ao chão, o feijão é rico em ferro, fósforo e cálcio. Minha avó também dizia: Nosso feijão é a salvação do povão.
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O tempo passou e eu não prestei atenção. A BR-101 fez parte do meu passado histórico – Rio-São Paulo: Niterói, oh como dói. Curitiba e Londrina; Foz do Iguaçu e as quatro fronteiras: Uruguai, Paraguai e Argentina. Tempos outros, com boa disposição e muita sorte: carro sem ar-condicionado, gasolina barata e asfalto ruim. De Touros, no Rio Grande do Norte, a São José do Norte, no Rio Grande do Sul, a 101 ligava doze estados do litoral brasileiro – 4.650 km de fé e pé na estrada!
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Existe ainda ou viramos ícaros? Pista dupla, asfalto lisinho sem crateras, barreiras de pedágio, vistas panorâmicas, postos de abastecimento de primeiro mundo, carros alimentados por energia solar? Ou continua na mesma, com crianças perdendo aula para vigiar o feijão secando ao sol, que vai garantir o sustento da família?