Os prejuízos em nome do preconceito
Pelas estatísticas oficiais, o maior motivo de encarceramento no Brasil é o tráfico de drogas, com 28%. Isto significa que temos hoje perto de 280 mil pessoas encarceradas por esse crime.
Se analisarmos pela ótica do estado kantiano, onde o cidadão é o próprio autor da lei, fica muito fácil perceber a hipocrisia. Crimes de maior prejuízo ao Estado, principalmente como a corrupção da coisa pública, o estelionato, a fraude eleitoral, as fobias criminosas, dentre outros, que trazem prejuízos enormes à população, estão sempre justificados, mascarados e com réus absolvidos mais cedo ou mais tarde.
Enquanto isso, são fartas as histórias de pessoas encarceradas pelo porte de pequenas quantidades de drogas, que após passarem muito tempo em prisão provisória, são condenadas a longos anos de prisão. Essas pessoas têm pouquíssima chance de retornar ao convívio social com sucesso. Primeiro pelo preconceito da sociedade com o histórico de encarceramento, depois pela convivência no presídio, que resulta numa afinação com os regulamentos do mundo do crime e aproximação às suas conexões, o que se torna a única coisa concreta que lhe resta quando sua liberdade “canta”.
Assistindo ao debate estabelecido entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) e, tendo a clareza de entender que um cria as leis e o outro administra suas consequências na execução; apurando um pouco mais a análise, pode-se enxergar que é na execução das leis e reflexão de suas consequências na sociedade que se pode ir aperfeiçoando-as e ajustando-as melhor à vida cotidiana. Me parece ser a própria função do Judiciário na organização da vida numa sociedade democrática, afinal, é lá que chega a necessidade de julgar os cidadãos e cidadãs “infratores” da lei, bem ou mal redigida e aprovada.
Com as estatísticas apresentadas, está mais do que claro que alguma coisa está desajustada na lei com relação ao crime de tráfico.
Enquanto o Judiciário se encontra imprensado pela cegueira da lei e tenta abrir espaço para o bom senso e a justiça ao indivíduo, o Congresso “joga para a galera”. Populista, ele se utiliza do discurso fácil, sensibilizando o fundamentalismo, despertado utilitária e raivosamente nos últimos anos, e posa de moralista.
Naturalmente, o problema se agrava tendo em vista que o discurso fácil é fértil à multidão insensata, privada das oportunidades, da educação e da cultura, que vive em um mundo fechado pelo preconceito e “valores sociais”, sem uma compreensão e crítica de suas origens e da hierarquia de poder estabelecida.
Por fim, tenho abordado constantemente por aqui o conflito entre o cidadão e o indivíduo. Um, agrilhoado aos regulamentos da vida em sociedade, e o outro, todo potência, necessitado de se atualizar (se tornar ato). Nesse arranjo, cabe ao Estado administrar a vida em sociedade, do ser social – o cidadão e cidadã – sem ferir a autonomia do indivíduo. O que ele come, bebe, fuma, cheira, a forma com que se satisfaz sem incomodar “de qualquer forma” o outro, não diz respeito ao Estado.
A humanidade passou por tanta mudança radical no convívio social – só para não esquecer: o medievo, o fim da escravização, a queda do sutiã, a posse da própria identidade de gênero, os modelos civilizatórios, a política, a religiosidade, o antirracismo, etc., etc. –, que se encontra apta à compreensão da urgente necessidade de enfrentar o preconceito e mudar a compreensão da sociedade em relação ao existente trânsito abundante das drogas na sociedade e a tipificação disto como “crime de tráfico” sem resultados concretos, com esse nível de encarceramento (e suas consequências), e altíssimo custo para as famílias e a sociedade.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia