As tragédias que se sucedem no Morro da Piedade, no Centro da Capital, sintetizam as contradições mais evidentes e brutais do modelo de sociedade e de Estado que estamos mergulhados e do qual relutamos em querer sair. A série de assassinatos de jovens negros ali ocorridos nos últimos dias escancara as entranhas do processo causador do genocídio social que se abate sobre a juventude negra do Brasil e, em particular, a do Espírito Santo, e reafirma a máxima segundo a qual, entre nós, a carne mais barata do mercado segue sendo a carne negra.
O problema, contudo, é que continuamos a não ver, ou a não querer ver. Permanecemos cegamente paralisados ante os corpos que descem do morro enrolados no saco preto e não conseguimos ver além disso. O que ocorre no Morro? O que ocorre em nossas periferias? O que se passa com os nossos jovens? Que processo social tem gerado tantas mortes?
Perguntas tão complexas que têm encontrado respostas simples: é a guerra do tráfico! Estão se matando na disputa pelo domínio da boca e a população tem livre-arbítrio para sair desse lugar de conflito, é a análise mais profunda que o andar de cima consegue elaborar! Não se aprofunda um milímetro nessa rasa e hipócrita afirmação que apenas se limita a explicar parcialmente a aparência da nossa barbárie. E compramos esse discurso como compramos o pão nosso de cada dia e, assim, naturalizamos o que não é natural.
Hoje é a Piedade. Ontem foi o Bairro da Penha. No mês passado, foi Central Carapina. Amanhã, a tragédia emergirá em outro bairro de periferia e assim seguirá em pleno vapor a linha de produção da fábrica geradora da nossa violência cotidiana, das mortes em grande escala, da indigência pronta-entrega e do medo in delivery, sem que discutamos e enfrentemos as raízes da questão.
Paradoxalmente, ao tempo em que tiros rasgam a noite e atravessam os corpos dos jovens negros da Piedade, a poucos metros dali, no Palácio Anchieta, sem qualquer piedade, o governo decide por fechar dezenas de escolas, por terceirizar a saúde, por congelar o orçamento da Defensoria Pública, por implementar um draconiano ajuste fiscal de mais de R$ 1 bilhão ao preço de um forte desajuste social. Ali também, onde parece que os tiros na Piedade não são ouvidos, ouve-se, com muita piedade, o clamor dos grandes empresários capixabas e a eles são concedidos bilhões em benefícios fiscais. Em suma, corta-se do pobre, garante-se ao rico.
Enquanto perdurar essa lógica perversa de um Estado a serviço de poucos, todo o resto é pura pantomina. Limitar a dramática situação da violência a uma questão das forças de segurança pública – desvirtuadas, desaparelhadas e desmotivadas – é a visão mais míope e desastrosa que se pode ter e o Rio de Janeiro é o exemplo mais eloquente disso.
Subir o morro com colete à prova de balas, fazer incursões policiais violadoras e truculentas com o sangue derramado, sem investimento em inteligência, sem investigação prévia, serve apenas para criminalizar a pobreza, superlotar ainda mais os presídios-masmorras, fazer o tráfico migrar para o bairro vizinho e montar a pirotecnia necessária para alavancar candidaturas de ex-secretários de Segurança Pública.
Tem sido assim desde sempre. Nunca deixamos de tratar a questão social, e seu componente racial, como questão penal. A face do Estado que a pobreza mais conhece no Brasil sempre foi a face policial. A saúde, a educação, a moradia digna, o esporte de qualidade, o Estado Social, em síntese, não sobem o morro. Nunca fomos capazes de reconhecer, enquanto conjunto da sociedade, que a desigualdade, esse abismo que separa os brasileiros em dois mundos completamente opostos, é a violência fundadora de todas as demais.
É mais simples, contudo, ocultarmos todas essas contradições pelo tráfico de drogas a termos de enfrentá-las na sua origem. É de certo modo cômodo depositarmos no tráfico todas as (ir)responsabilidades sociais e políticas, sem, entretanto, questionarmos minimamente quem produz o tráfico e a que interesses ele tem, perversamente, atendido em nossa estrutura social.
A tragédia da Piedade, assim, só nos faz lembrar que este país nunca teve piedade para com os negros e pobres e continuará a não ter se não formos capazes de romper com este estado de coisas. Um bom começo para isso poderia se dar desmascarando a hipocrisia daqueles que nos governam.
Bruno Alves de Souza Toledo – É professor de Direitos Humanos e doutorando em Política Social pela Universidade Federal do Estado (Ufes)