Eventos de perda de liberdade e cidadania nas comunidades
A cada dia, a ilusão da garantia de cidadania e da propriedade pelo Estado brasileiro se esvai na consciência da população.
Assistimos ao circo de horrores que é a guerra do tráfico nas comunidades, observando somente o conjunto que aparece na mídia, mas os horrores acontecem também e principalmente no varejo, na vida das famílias e das pessoas. A tomada da residência pelo tráfico acontece muito e não tem voz ou estatística, não vira notícia. No geral, a pessoa recebe uma visita que impõe a desocupação do imóvel e simplesmente sai, porque não existe outra opção.
Às vezes, como aconteceu na Piedade há pouco tempo atrás, o evento é coletivo e chama a atenção da sociedade, obrigando as autoridades a se posicionarem, mas os eventos individuais não aparecem na mídia e nem mesmo nos boletins de ocorrências policiais. O agredido não tem segurança do Estado para denunciar, é obrigado a deixar seu imóvel e sumir da comunidade com sua família, que está toda em eminente risco de vida. Nestes casos, denunciar a polícia é assumir um alto risco de morte.
A vida do cidadão comum nas comunidades tem regulamentos próprios, muito distantes da moral social, como já explanei neste espaço. As coisas são ajeitadas dentro das realidades, principalmente separando das gangues, a população que não tem envolvimento no crime. Porém, os códigos do crime não são fixos e irrevogáveis, pelo contrário, são maleáveis e circunstanciais, basta haver uma desconfiança ou necessidade, para que caiam regras colocadas e apareçam novas e convenientes.
Neste conjunto entra também o aliciamento de adolescentes e jovens para o crime, que muitas vezes movidos pela adrenalina da “vida louca”, adentram o movimento e, se em algum momento acordam, não podem mais sair. As famílias ficam desesperadas e só conseguem enxergar na fuga da região a possibilidade de libertar seus filhos. Novamente, pela falta de segurança, a população é expulsa de seu lugar.
A meu ver, a efetiva segurança não está ligada à força bélica policial e muito menos às ações violentas do Estado. A questão é mais profunda. É preciso que o Estado seja respeitado como a união de seus habitantes numa vida coletiva e qualquer desvio de conduta ser analisado em busca dos motivos fundantes para, então, buscar a correção com sabedoria e solidariedade, visando principalmente o fortalecimento da população em suas posições e a garantia de seus direitos.
O maior impedimento para que isso aconteça se dá na formação das cidades, que estão muito longe de dar tratamento igual para sua população. Enfim, a primeira violência que é institucionalizada é a discriminação territorial das cidades, que localiza os “cidadãos” nas áreas nobres e o “restante” nas periferias. Mas o pior mesmo é que, além da localização, existe o tratamento dado à população pelo próprio Estado, que é muito diferenciado.
A ausência do Estado nas periferias, como já dito aqui, significa, além da falta de oferta de serviços, também a impossibilidade de fiscalização que estabelece o caos social e possibilita todo tipo de arbitrariedades, inclusive a tomada de imóveis e o aliciamento e consequente escravização dos jovens no crime.
Para que a violência deixe de ser espetáculo de mídia em telejornais diários e mola propulsora para eleição de agentes de segurança, como temos assistido aqui no Espírito Santo, o Estado precisa deixar o papel de “super-herói” e “pseudojusticeiro” – afinal ele que constrói a verdade – e assumir seu papel de proporcionar o bem-estar de toda a população, principalmente garantindo sua cidadania e seus direitos.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia