Acordei meia hora antes do despertador tocar e ganho mais tempo para o visual. Me arrumo, saboreio o mingau de maizena e água, e cadê a chave da porta? A meia hora de vantagem se perde na busca desesperada por uma chavezinha que, sem ela, não saio de casa. Embora, francamente, quem vai roubar o quê? Ah, deixei na bolsa…mas onde anda a bolsa? Essa é bem grande, não pode ter sumido de uma hora para outra. Só então lembro que a bolsa dorme no fundo do armário há exatamente seis meses e três semanas: eu, Maura Madreira, 31 anos, faxineira, estou de loquidau.
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Faço as contas: estou resistindo há quase sete meses sem faxina, sem auxílio pandemia, sem reservas e sem esperanças dessa droga de vírus ir embora. A patroa pagou o primeiro mês sem trabalho, depois parou, mas uma vez por mês chama pra ir buscar a “bolsa-família” – um pacote de feijão ou de pó de café, arroz ou macarrão, pão ou sal. Às vezes varia, leite e salsicha, álcool gel. Mas sou perita no malabarismo de esticar o máximo que posso, faço milagres. Moro sozinha num quarto e sala, sem varanda e sem quintal, uma janela dando pra outras janelas: mal dá pra ver a cor do céu. Não admira que me arrume pra ir trabalhar sem trabalho.
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Cortaram a luz por falta de pagamento e nem posso ver televisão. A vizinha deixou puxar um fio pra geladeira ou o chuveiro. Disse que a televisão gasta muito e só passa programa ruim, mas no corredor, nós duas de máscara e cada qual em sua porta, como mandam a gente fazer. Ela conta os ocorridos na novela tintim por tintim, lembra até das propagandas. Num disse que só tem programa ruim? Outro dia deixou a porta aberta pra eu ver o último capítulo daquele seriado das Fernandas, mãe e filha, foi legal. Lembrei da minha mãe, que nem sei onde anda e como está se virando neste pão-de-mia.
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Mas nem todo vizinho ajuda os pobres, mesmo se todo mundo aqui é pobre, mas tem gente que é menos pobre, se refestelando nos 600 mesmo ganhando o salário, se achando. Esses andam sem máscara, querendo que a pandemia se estique até o ano 2030. Num podiam dar uma contribuiçãozinha pra quem num tá ganhando nada, tipo eu? Botam os filhos pra fora porque estão enchendo o saco dentro de casa, e eles ficam fazendo zoeira, batendo na porta alheia, jogando bola e amarelinha no corredor, subindo e descendo escada. Quando distraem, ataco o lanche que eles levam pra comer no corredor.
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A patroa também não sai de casa nem se pegar fogo no apartamento. Faz home office e compra tudo online, embora eu não entenda bem como essa coisa funciona. Mas num falta comida e outro dia trocou todas as cortinas das janelas. Num vi, ela que contou, porque também não me deixa entrar na casa. Mas tá pirando que nem eu: outro dia, em vez do pacote de feijão, mandou os remédios que toma pra pressão alta, tive que voltar lá pra devolver. Me deu o feijão? Esqueceu. Disse que comprou a cortina na cor errada, vai ter que devolver, e não abriu a porta pro entregador do restaurante porque pensou que era pivete – o garoto voltou lá três vezes!
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O problema maior é a vizinha do andar de cima, a enfermeira: vai e volta com o uniforme branco sempre sujo, espalhando o tal vírus pra todo lado. Se o uniforme tá sempre sujo, quer dizer que ela não tira nem lava quando chega em casa. Reclamei com a síndica e agora a enfermeira tá a fim de me contaminar: deixou um saco de lixo na minha porta. Ia chamar a polícia, mas esqueci que não tenho telefone. De vingança, deixei meu lixo na porta dela, mas estou em desvantagem: ela continua trabalhando e ganhando o auxílio, portanto o lixo dela é muito maior. Pirando, eu?! Quem não pirou ainda que se cuide.