Choveu durante a noite e o Papai Noel não viu
Em contagem regressiva para o maior evento da cristandade, dedico essas mal-traçadas linhas aos fantasmas dos natais passados, embora não tenha nenhum Scrooge no repertório. Meus primeiros natais foram em Muniz-Freire, mas não me lembro de nenhum acontecimento relacionado à data. Havia um Papai Noel ansiosamente aguardado? Um pé de sapato na janela? ‘Não põe os dois que roubam…’
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Meu segundo endereço: a subida do cemitério. Entre quatro e cinco anos mudamos para Alegre, e por algum tempo moramos em uma das duas casas gêmeas atrás da igreja matriz, na subida do morro do cemitério, caminho obrigatório para quem morre. Quando vinha enterro meu pai fechava a janela. Nesse tempo a gente tinha medo de não ter se comportado bem, correndo o risco de perder o presente. No singular, pois não havia o exagero de presentes dos natais modernos.
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Ali passamos apenas um natal, mas ficou na memória, talvez porque acabou em tragédia. Minhas irmãs e eu ganhamos nossas primeiras bonecas feitas de um material que não era pano – um tesouro longamente desejado! Revirei a internet e não descobri do que eram feitas – Papel-machê? Celulose? O vestido era de papel crepon, portanto, dá para ter uma ideia… Choveu durante a noite e o Papai Noel não viu, e de manhã achamos nossas lindas bonecas desmanchadas pela chuva.
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Passamos o natal chorando, e mesmo quando ganhamos outras no pós-feriado, não tinham o mesmo encanto. As bonecas desse tempo não mexiam braços e pernas, o cabelo não penteava, os olhos não piscavam, não falavam papai e mamãe. Não tudo. Além desses detalhes hoje obrigatórios, eram feias, mas naquele tempo eu achava lindas. Ninguém sente falta do que não conhece.
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A culpa da escassez de bonecas nas vitrines devia ser daquela guerra rugindo pela Europa. Mesmo na alegre cidadezinha no interior do Espírito Santo havia escassez disso ou daquilo. Houve racionamento de combustível e alimentos, com longas filas para comprar o pão nosso de cada dia: o trigo era importado. Ainda é, mas não há escassez de pão. Chocolate, Chá Lipton… e as charmosas meias de nylon, obrigatórias nas pernas da mulher elegante! Sumiram!
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Era um tempo em que a gente era feliz e não sabia – sem televisão, celular, UberEat, TicToc… Menos comunicação, mais diversão. Revista do Rádio, Alterosa, O Cruzeiro. Carlito era o rei das telonas, novela era na Rádio Tupi. Cresci brincando na rua depois da escola, invadindo os quintais da vizinhança para pegar fruta no pé: ‘Pode pegar manga, Dona Jovelina?’. Sempre podia. Sonho nunca realizado? Brincar na chuva!
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Com o tempo as bonecas da infância foram ganhando funções humanas, mas aí eu já não brincava com bonecas. Além do movimento, as bonecas modernas falam e namoram como qualquer adolescente, interagindo com suas mães de mentira no doce mundo do faz-de-contas. Não sei se podem dormir na chuva, mas ninguém mais põe o sapatinho na janela.