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Filosofia e o Poder

Não é objetivo dessa coluna a discussão acadêmica da filosofia. Pelo contrário, nos propomos a popularizá-la o mais possível. Naturalmente, estamos sempre revisitando clássicos e dialogando com os contemporâneos, pois sabemos que não estamos “reinventando a roda”, mas podemos dizer que sempre tentamos criar novos modelos da “velha roda”.

Para melhor perceber a alardeada utilidade da filosofia, tanto podemos aprender com Platão (Séc. IV a.C.) chamando de governo ideal, aquele exercido pelo filósofo, o amante do saber, que está sempre em busca da verdade, a Sofocracia, como também aprendemos com Alejandro Cerletti (2009), afirmando que “a pergunta filosófica intervém no mundo a partir da subjetividade de quem a formula”. 

Se compararmos o filósofo antigo com o contemporâneo, vamos perceber que a sintonia é a mesma e que os aproximadamente 2.500 anos que os separam não ocorreu mais que uma atualização. Cerletti substituiu intervenção pessoal pela prática filosófica de intervenção no mundo. 

A novidade da atualização diz respeito a um novo momento onde a personificação já não tem lugar. O poder não se cristaliza em uma pessoa, no máximo se consegue uma hegemonia de poder, mas sempre de um grupo.

Quando participo de grupos, não de redes sociais, mas de ação prática, seja na política, defesa do meio ambiente e prática de educação ambiental, cultural, ação solidária e mesmo de amigos, gosto de observar como se estabelece o poder, como flui, se é burocrático ou natural, essas coisas.

Vou ilustrar com dois exemplos que tenho vivido mais intensamente nas duas últimas semanas: o primeiro é o #NaoSeja1Lixo, grupo de pessoas com idade entre 18 e 60 anos, do litoral norte da grande Vitória, Nova Almeida e Praia Grande. São surfistas, professores, músicos, empresários, etc. todas pessoas comuns que se dedicam voluntariamente à prática da educação ambiental e conscientização. 

Trabalham muito, recolhendo lixo, produzindo mídia, fabricando e instalando placas, etc. Às vezes, o trabalho para pela necessidade de decidir uma ação ou questão, e aí acontece o poder – observo como ele é volátil – cada membro com sua persuasão vai se deslocando à medida que vai nascendo a hegemonia no grupo. É fantástico. Gente majoritariamente jovem absolutamente consciente da necessidade do exercício da política nas relações e também conscientes de uma outra necessidade, que é da discussão sadia e madura para o bom andamento do propósito do grupo.

O outro exemplo foi a mudança de uma loja chamada Thelema no Centro de Vitória. Aqui já começa o exercício filosófico. Loja? Bem, também uma loja, o dono acrescenta, “é uma loja colaborativa” (?). O que pude perceber é um coletivo de pessoas com uma incrível capacidade de diálogo e construção de poder, pelo menos quatro pequenos negócios e ainda a ousadia de se travestir de equipamento cultural. Uma demanda enorme de trabalho, mas que se dá numa suavidade fantástica, estabelecendo-se o poder na mais pura e ampla discussão, sem apelação, gritos, melindres ou ciúmes. Achei mesmo que esse grupo poderia dar formação para muitos dos partidos políticos que temos hoje.

Assim podemos contemplar, como a Coruja de Minerva observando o final do dia, que a atualização de Cerletti vem clarear, conceituar, assimilar a teoria platônica mantendo sua base que é a filosofia, mas acrescentando a nova ordem dos tempos modernos, tirando a pessoalidade e estabelecendo a filosofia, a pergunta filosófica, como condição de possibilidade para a mudança e o estabelecimento do poder em qualquer instância. 

Como os dois exemplos demonstram a sabedoria jovem em condições de ensinar muitas raposas políticas agarradas nas tetas do poder, que não abrem espaço ao novo e, para buscar um pouco mais na teoria os fundamentos da vida prática, vou deixar um recado da filosofia africana:

“Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que atirou hoje”.


Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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