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Finitude

Resiliência, resistência, consciência e ação

Em tempos de pandemia, com o horror das mortes inesperadas, a realidade da finitude espreita a todos nós. Embora vivamos a efemeridade do mundo, fugimos desse tema, iludidos com a “constância do presente”, como se não conhecêssemos do assunto.

A natureza, nossa mãe e nosso berço, está sempre sinalizando com esse conhecimento na estrutura do movimento de toda a vida: morre o bebê que dá lugar à criança, esta morre para aparecer o adolescente logo abandonado para dar lugar ao jovem, esse precede o adulto para preparar a chegada do velho que, por fim, retornará à mãe terra.

Desde criança sofremos perdas, seja de animais, brinquedos, amigos, ancestrais, espaços (como a casa ou comunidade que nascemos e passamos a primeira infância, 1ª creche, escola, 1º trabalho, namorada ou namorado, etc.). São muitas perdas que vão nos ensinando a compreender a transformação constante do mundo e de nós mesmos, mas a quimera do “presente constante” impõe um sentimento de perda desesperador, que por um bom tempo nos causa grandes sofrimentos, angústias e desespero, ocultando “o curso natural da vida”.

Viver o luto é uma necessidade humana e podemos dizer que a ausência do objeto material de nosso amor é uma violência à nossa saúde mental, contudo também na esfera dos sentimentos acontece coisa parecida, eles têm origem e maturação, vão se transformando à medida que nos afetam os acontecimentos, que adquirimos conhecimento, experiência de vida, etc. A euforia amadurecida se torna alegria prudente na medida de cada um, as paixões se nos tornam plausíveis e também o desespero da perda vai dando lugar a uma saudade cada vez mais mansa, até se transformar em “boa, rica e alentadora lembrança”, naturalmente na marcha emocional de cada um.

Mesmo depois de todo esse arrazoado, sabemos que o amadurecimento para a finitude é extremamente complexo e quase humanamente impossível de ser elaborado, principalmente em momentos de perda. Trago a reflexão sobre o tema para nos ajudar a suportar o horror com a visão da continuidade da vida e a confiança num logos universal sempre transparente na natureza em seus arranjos performáticos, nos ensinando que a destruição em si não é mais que uma face do movimento da vida em sua transformação constante.

O pré-socrático Heráclito, filósofo da natureza, que viveu por volta do século VI a.C, nos ensina que a vida é movimento, nada é estático e tudo vive sobre a tensão dos contrários, quente e frio, dia e noite, vida e morte, saúde e doença, expansão e retração, etc.

Mais tarde, no século XVIII, Lavoisier, considerado o pai da Química, anuncia: “Na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”.

Contudo, vale ressaltar que a espécie humana, enquanto exclusiva detentora da razão, driblou a natureza em sua cadeia de predador e presa (controle populacional tão comum nas demais espécies), quando assumimos o domínio sobre as outras espécies e aprendemos a nos defender das doenças, adquirindo cada vez mais longevidade. Isso resultou numa população triplicada nos últimos 70 anos.

Dentro de uma visão holística, numa perspectiva de planeta vivo, Gaia, podemos considerar a hipótese de que o desenvolvimento desordenado de uma espécie, não uma qualquer, mas a que pretende o domínio da própria natureza e que tem vivido de forma consumista, extrativista, e despreocupada com o futuro, venha a provocar “o logos natural” a uma reação defensiva, ou seja, sermos nós os produtores de nossa própria dor.

Assim, para fechar essa reflexão, naturalmente sem concluí-la, além de sofrer e me solidarizar com o sofrimento gerado pela perda de tantas vidas, de me indignar destas perdas serem transformadas em números estatísticos, disputas políticas e até descaso, quero indicar a leitura do romance do poeta português José Saramago – As intermitências da morte – como contribuição em forma de justificação, resignação e superação ao imediatismo da dor e incremento à resistência, reflexão necessária a cada dia desses tempos difíceis.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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