Lideranças religiosas esquecem que o cristianismo verdadeiro pode e deve ser visto como de esquerda
Antes mesmo de ser confirmada a vitória do socialista Luís Arce sobre os autores do golpe de novembro de 2019, na Bolívia, começaram a circular nas redes sociais no Brasil, nesse fim de semana, as mais variadas mensagens demonizando movimentos progressistas na América Latina. Um deles, os protestos no Chile, tachados de vandalismo, “absurdos da esquerda” e coisas desse tipo.
Uma forma de disseminação de fake news, com pesadas distorções dos fatos, que envolvem no país vizinho não apenas grupos da esquerda, mas a massa da população afetada com o aumento da desigualdade social e as dificuldades de acesso a bens e serviços públicos. Na base da emissão dessas postagens, no Brasil e no continente, políticos e grupos religiosos alinhados a uma visão política subserviente, como a do governo Jair Bolsonaro, eleito por significativa parcela de católicos e, principalmente, evangélicos, como o mito defensor da família, dos bons costumes e da pátria.
Na vida real, esse discurso soa falso, tanto do ponto de vista das escrituras sagradas, quanto da visão de uma política ética e transparente, fincada na democracia e voltada para tornar a sociedade mais justa e igualitária. E, decididamente, isso não está acontecendo no país vizinho, que é um retrato do que poderá se transformar o Brasil em futuro bem próximo, como resultado do desastre que se alarga a cada dia em todas as áreas da administração pública, deixando um pesado saldo para a população.
As fake news, é bom lembrar, não são novidade e tiveram um papel fundamental, especialmente junto a igrejas evangélicas, tocadas por lideranças que perderam qualquer tipo de senso crítico, seja por interesses financeiros e econômicos, ou por desconhecimento do cenário social e político em que vivem. Considerando que ideologia é um sistema de ideias, a religião também não deixa de ser uma ideologia.
Nesse contexto, basta meditar um pouco nos ensinamentos bíblicos para identificar profundas discordâncias entre o fazer e o ser de imensos grupos dos chamados evangélicos e católicos que se dizem seguidores de Jesus Cristo, mas, na prática, assumem comportamentos políticos contrários ao que ele pregou. O endeusamento do “mito” Jair Bolsonaro é, sem risco de errar, o mais relevante exemplo dessa anomalia, perfeitamente justificada, somente, por uma total falta de discernimento das coisas.
Como consequência desse estado de alienação, em que a percepção da realidade desaparece, dando lugar a um caminhar destituído de qualquer pensamento crítico, essa camada sustenta o que há de pior no cenário político. Isso porque leva em conta, exclusivamente, manter-se distante dos espaços progressistas ou de esquerda. Fruto de pesada manipulação a cargo de líderes de congregações religiosas, alinhados a regimes políticos e à área financeira, veem a esquerda como o próprio demônio, que precisam combater a todo custo.
Foi nesse contexto que Bolsonaro se elegeu, disseminando entre os religiosos coisas como o “kit gay”, “mamadeira de piroca”, entre outros absurdos, colocando as forças progressistas como desumanas e diabólicas, com citações bíblicas distorcidas por lideranças religiosas refesteladas em seus círculos de poder. Essas colocações podem ser observadas diariamente até o dia 12 de novembro, quando se encerra a propaganda política, e nos carros de som que circulam pelas ruas de Vitória e cidades brasileiras.
Esses chamados pastores abandonaram com a sua prática a base do cristianismo, que é a inclusão, em especial os colocados à margem da sociedade por um sistema político e econômico opressor. Esquecem que, desde o princípio, o cristianismo verdadeiro pode e deve ser visto como de esquerda, na medida em que condena a usura (o lucro) como objetivo maior de transações comerciais, o preconceito de qualquer espécie, a desigualdade social, a violência, e é mais voltado aos pobres, a quem direciona amor, afeto e acolhimento.
Essa prática remete ao fazer político em toda a sua dimensão e deveria ser motivo de enfrentamento a setores que concentram muito poder e cuja marca é a exclusão da maioria. Nesse sentido, os discursos políticos ecoam com pesado tom de hipocrisia, da mesma forma que pregações em templos religiosos ou nas lives em redes sociais. Pregam a Cristo, mas negam as suas ordenanças.
O cenário somente não é pior, porque, contrariando os 30% que dão sustentação a Bolsonaro, se levantam lideranças católicas e evangélicas que seguem a doutrina de Cristo e enfrentam, pela pregação da palavra, as marcas fascistas do atual governo. São padres e pastores que lembram Martin Niemöller (1892–1984) e Dietrich Bonhoeffer (1906), pastores alemães que enfrentaram o nazismo de Adolf Hitler e, mesmo condenados à morte, não desistiram de ser cristãos, na essência da doutrina.
É de Niemöller o alerta contido nesse texto, escrito na prisão nazista: “Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata. Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista. Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar”.